Boletim - 344
Julho de 2021
A complexidade em torno da simplificação do processo

     

Data: 29/06/2021
Autor: IBCCRIM

A ideia de inserção de fórmulas negociais no processo penal sempre gerou controvérsia. A cada nova proposta de lei buscando a abreviação do processo ou a obtenção de provas por meios consensuais, renovam-se as críticas relativas à suposta sobreposição de critérios de efetividade em relação aos critérios de justiça.

As últimas décadas foram pródigas em trazer categorias negociais ao processo penal brasileiro. Desde a entrada em vigor da Lei 9.099/95, a legislação pátria viu-se constantemente modificada para abranger institutos como a transação penal, suspensão condicional do processo, colaborações premiadas e acordos de não-persecução penal.

Diante da dificuldade do Estado de investigar, processar e julgar os milhares de casos que deságuam diariamente nas varas criminais, os institutos de consenso foram vistos como uma solução acessível. Como uma válvula de escape para a rápida resolução de muitos feitos. Não se observa nada a indicar que essa tendência irá mudar.

No entanto, a questão permanece válida. É possível falar em uma justiça penal verdadeiramente negocial em nosso país? Apesar da introdução de instrumentos que dependem de um “acordo” entre as partes, são raríssimas ainda as ocasiões nas quais há uma negociação efetiva. O que se vê, na imensa maioria dos casos, é a assinatura de documentos semiprontos, que mais parecem contratos de adesão.

O modelo consensual de justiça penal nasceu no sistema norte-americano, no qual as partes detêm uma autonomia de fato para gerir as provas e determinar os rumos do processo. Lá, portanto, os institutos consensuais estão alinhados com a base principiológica-processual existente naquele sistema. Eles funcionam dentro de uma dinâmica específica – e, não é demais lembrar, com uma série de críticas.

A pretensão de que essas categorias negociais produzam aqui, num sistema processual bastante diferente, os mesmos efeitos de lá exige muito mais do que a simples inserção de dispositivos legais no nosso ordenamento jurídico. Sempre envolve adaptação tanto do instituto consensual como do próprio sistema. Caso contrário, haverá conceitos e institutos que não se comunicam entre si – o que é prejudicial para a efetividade e para a justiça.

Nessa nova dinâmica consensual, também os atores do processo devem se adaptar. Ao juiz cabe compreender, por exemplo, sua nova posição, mais simbólica e menos protagonista, dentro da instrução. É essencialmente uma função de garantidor da lei. Isso significa que o magistrado deverá deixar às partes a liberdade de escolherem o rumo do processo. De outra forma, não será uma justiça negocial.

Por sua vez, os representantes do Ministério Público devem ser conscientes de que o modelo de justiça negocial acarreta ainda mais responsabilidade para o dominus litis. Por exemplo, eventuais erros de estratégia processual produzirão mais consequências.

Além disso, a própria existência de institutos consensuais deve levar a um maior cuidado na apresentação dos feitos, em plena aderência à prova colhida. Ao contrário do que às vezes se pensa, categorias consensuais exigem maior qualidade do trabalho acusatório. É falso – e absolutamente injusto – o argumento de que, como caberá ao acusado aceitar ou não as condições, poderia haver um menor cuidado nessa fase inicial.

Por óbvio, não é possível fechar os olhos ao fato de que nossa realidade social concreta impõe ainda maiores cautelas para a justiça negocial. Não basta dizer que o réu tem liberdade para aceitar ou não. A imensa maioria da população não tem acesso a uma orientação jurídica efetiva sobre os acordos. Além de que, muitas vezes, inexistem condições mínimas que assegurem um exercício autônomo dessa faculdade.

A advocacia também tem de aprender a lidar com a sistemática negocial. Acostumados a um processo de embate, contencioso, advogados precisarão desenvolver habilidades novas, capazes de prover uma defesa eficiente aos seus clientes. A postura de mera crítica aos institutos negociais, sem a devida compreensão, pode gerar perigoso déficit na representação dos imputados.

Há muito a aprender, estudar e aprimorar. É preciso olhar para cada instituto de forma madura. Tome-se, por exemplo, a colaboração premiada. Introduzido em nosso sistema para casos específicos, o instituto foi fortemente banalizado nos crimes econômicos. De alguma forma, observam-se efeitos inversos aos objetivos da lei. Em vez de multiplicar os casos elucidados por meio de poucos acordos, houve uma multiplicação de acordos de colaboração (e diminuição de pena). Nos casos em que a delação poderia ser mais útil para promover justiça, a colaboração raramente aparece.

Recentemente implantado em nosso ordenamento, o acordo de não persecução penal é também exemplo de nossa dificuldade em lidar com categorias consensuais. Por exemplo, a confissão do imputado como condição para assinatura do acordo. Além de sua questionável constitucionalidade, essa exigência não tem o menor sentido em uma justiça verdadeiramente negocial.

A justiça negocial exige reflexão. Não é mero preciosismo técnico. A vida de muitas pessoas é afetada pela utilização dos instrumentos de justiça negocial. Não cabe tratamento simplista – com fórmulas prontas ou negacionista – fingindo não ver a existência desses instrumentos. É mais que hora do aprofundamento teórico, da crítica madura, do diálogo aberto sobre a justiça negocial criminal. Eis a razão para o presente dossiê.


Notas de rodapé

    

A crise existencial da justiça negocial e o que (não) aprendemos com o JECRIM

Aury Lopes Junior  

Doutor em Direito Processual Penal pela Universidad Complutense de Madrid.

Professor Titular no Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais da PUCRS.

Advogado Criminalista.

Link lattes: http://lattes.cnpq.br/4629371641091359

ORCID: 0000-0002-7489-3353

aurylopes@terra.com.br


Resumo: O artigo analisa a tendência de expansão dos espaços de negociação no processo penal brasileiro, desde uma análise crítica dos argumentos justificacionistas e da equivocada tendência de importação do problemático instituto do plea bargaining norte americano. Aborda a ausência de igualdade processual para desconstruir o mito da voluntariedade da negociação. A crise do processo penal e o entulhamento da justiça criminal precisam ser enfrentadas de outras formas, não sendo a expansão da negociação o remédio adequado.

Palavras chaves: Justiça negocial – Plea bargaining – Transação penal – Acordo de não persecução penal – Espaço de consenso.

Abstract: The article analyzes the tendency for the expansion of negotiation spaces in the Brazilian criminal process, from a critical analysis of the justificationist arguments and the mistaken tendency to import the problematic north american plea bargaining institute. It addresses the absence of procedural equality in order to deconstruct the myth of voluntariness in negotiation. The criminal process crisis and the clogging of criminal justice must be dealt with in other ways, and the expansion of negotiation is not the appropriate remedy.

Keywords: Negotiation justice - Plea bargaining - Criminal transaction - Non-criminal prosecution agreement - Space of consensus.



Data: 29/06/2021
Autor: Aury Lopes Junior

O entulhamento da justiça criminal e a incapacidade do sistema de dar conta da imensa demanda não é novidade e tampouco exclusividade do sistema jurídico-penal brasileiro, mas sem dúvida esses fatores são decisivos para o fortalecimento do discurso expansionista dos espaços de consenso. Essa desarmonia temporal (ou da percepção do tempo) facilita, imensamente, a aceitação de atalhos e soluções imediatas, pois conduz à ilusão de uma justiça instantânea, desconsiderando que a ruptura temporal é crucial para que se respeite o tempo do direito e o tempo do processo.1 Iniciamos em 1995, com a Lei 9099 e os institutos da transação penal e suspensão condicional do processo, mas pouco aprendemos com o fracasso das expectativas incialmente criadas. Os juizados especiais criminais não só defraudaram a expectativa de desafogo da justiça criminal, como se mostraram perversos na ampliação do direito penal bagatelar. Não apreendemos com esse erro e seguimos acelerando, em verdadeira narcose dromológica, rumo ao suicídio do plea bargaining,2 felizmente ainda não consagrado, mas não faltam esforços para tanto.

Negociar é possível e talvez até salutar, mas é preciso saber a dose certa do remédio para não se transformar em veneno. Primeiro ponto é compreender que nosso sistema jurídico (civil law) impõe limites que não permitem a importação de uma negociação tão ampla e ilimitada como o plea bargaining norte americano (common law), que era o sonho do ex-juiz-ex-ministro Sergio Moro. Uma negociação dessa magnitude representa o fim do processo penal brasileiro, na medida em que legitima em larguíssima escala a “aplicação de pena privativa de liberdade sem processo” (o que é absolutamente inconstitucional). Nos Estados Unidos, acordos assim superam 90% dos meios de resolução de casos penais, chegando a 97% nos casos federais [Walsh3] e até 99% em Detroit [Langbein4]. Significa dizer que mais de 90 de cada 100 casos criminais são resolvidos com a aplicação de uma pena sem nenhum processo, sem contraditório e sem produção de provas.

Convenhamos, não existe (e nem teria como existir) sistema judicial no mundo que condene 9 de cada 10 acusados, pelo simples fato de que o número de acusações abusivas e erradas supera longe a casa dos 10%, sem mencionar a importância do contraditório5 e do direito de defesa enquanto mecanismos de desconstrução da versão unilateralmente construída; as inúmeras e eternas discussões sobre os limites semânticos dos tipos penais; a possibilidade de provar a existência de causas de exclusão da ilicitude; etc. Ademais, existe um argumento bastante óbvio e irrefutável: partindo da presunção de inocência6 (fruto da evolução civilizatória), o nível de exigência de qualidade probatória necessário para condenação é sempre significativamente maior do que aquele necessário para mera acusação. Logo, sempre haverá um número maior de acusações improcedentes do que procedentes, sendo sintoma de distorção um sistema que gere cifras de condenações superiores a 90%, como ocorre nos modelos negociais sem limite de pena.

Mas o principal argumento justificacionista da justiça negocial, o ‘entulhamento’, precisa ser visto desde outra perspectiva: banalizamos o direito penal como resposta a problemas sociais complexos, priorizando soluções paliativas e sem enfrentar as causas reais. Sem dúvida o enfrentamento da crise do bem jurídico contribuiria para a redução significativa desse argumento eficientista, ainda mais se aliado ao filtro processual de maior exigência de responsabilidade acusatória e principalmente, efetividade do controle de admissibilidade da acusação por parte dos juízes. Na dimensão processual, existe ainda um imenso e perverso (ab)uso do poder de acusar, com a conivência do poder judicial que não barra, como deveria, uma enxurrada de acusações natimortas, inúteis ou despidas de suficiente justa causa. E, quando se trata de acusação para negociação, além dos evidentes abusos (overcharging), existe uma ausência de filtragem processual, na medida em que os juízes simplesmente desconsideram essa análise, basta ver o que ocorre nos juizados especiais criminais.

Explica Walsh7 que esse desequilíbrio no tratamento é tão sério que nos EUA, no Texas e na Carolina do Norte, juntamente com alguns outros estados, é obrigatório que as partes compartilhem evidências (provas) antes do acordo. Um procedimento muito importante que não está sendo ventilado no Brasil (e que já deveria ter entrado junto com o acordo de não persecução penal) como requisito para a realização do acordo, proibindo que o acusado seja impedido de ter acesso8 à integralidade dos elementos colhidos e tenha que decidir sobre fazer ou não o acordo a partir de uma análise parcial da viabilidade ou não da acusação. Esse dever de compartilhamento é uma exigência de boa-fé e transparência que não só deve pautar o agir do Estado, mas também como uma forma de evitar “blefe” e acordos abusivos. Se a “estratégia” e a “malícia” podem ser utilizadas nos negócios privados, não o devem quando se trata de um agente público.

Cada avanço do espaço de negociação acarreta um achatamento da garantia da jurisdição – Princípio Supremo do Processo Penal (Werner Goldschmidt) – e de todo o devido processo, além de sepultar qualquer esperança de se ter um processo como procedimento em contraditório (Fazzalari). Fulminada a legitimação formal do processo, melhor sorte não assiste ao seu caráter epistêmico, pois o sistema negocial prescinde de qualquer compromisso ético com a “verdade”9 (crítica também feita por Schünemann10) e com o valor “justiça”.

A cultura inquisitória aplaude o ressurgimento da confissão como a ‘rainha das provas’, demostrando o primeiro erro do recém implantado acordo de não persecução penal. Para piorar, a negociação – na sua essência – é obstáculo à instrução, ou seja, na perspectiva utilitarista-eficientista na qual se insere, a negociação deve ser prévia à instrução criminal exatamente para se evitar a parte mais cara e morosa do processo penal. A aceleração por ela exigida faz com que nenhuma prova seja produzida em contraditório judicial, ressuscitando assim mais um ícone da cultura inquisitória: supervalorização da confissão e dos atos de investigação, aqueles realizados no inquérito policial, sem contraditório, com limitação da defesa, da publicidade, ausência da garantia da jurisdição, etc. Isso tudo demonstra, ainda, a falácia do argumento de que a negociação é característica do sistema acusatório.11 Todo o oposto: ela se encaixa perfeitamente na estrutura inquisitória brasileira, por exemplo, alinhando-se a esses elementos tipicamente inquisitórios referidos.

A pena passa a não ser mais uma consequência do delito, mas sim do acordo. Portanto, além de representar o fim do processo penal e gerar um previsível superencarceramento, o abuso da esfera negocial desconecta o fundamento legitimante da pena, pois ela passa a não guardar mais nenhuma relação com os argumentos que justificam sua existência e tampouco cumprir com suas funções estabelecidas. A pena torna-se fruto apenas da negociação entre as partes, sem qualquer ancoragem nos argumentos que historicamente a justificaram.

A justiça negocial viola desde logo esse primeiro pressuposto fundamental, pois o poder de penar não passa mais pelo controle jurisdicional e tampouco se submete aos limites da legalidade, senão que está nas mãos do Ministério Público e vinculado à sua discricionariedade. É a mais completa desvirtuação do juízo contraditório, essencial para a própria existência de processo, e se encaixa melhor com as práticas persuasórias permitidas pelo segredo e nas relações desiguais do sistema inquisitivo. É transformar o processo penal em uma “negociata”, no seu sentido mais depreciativo.

Schünemann (2013) critica o suposto princípio de consenso, frequentemente invocado para legitimar o modelo negocial, taxando de “eufemismo”, por trás do qual se ocultaria uma sujeição do acusado à medida de pena pretendida pelo acusador, enquanto resultado mínimo, de quem é colocado em posição de submissão através de forte pressão por parte da Justiça criminal sobre o acusado. É uma ficção, desde o ponto de vista prático, conclui. Não existe consenso ou voluntariedade, porque não existe igualdade de partes/armas. Existe uma submissão do réu a partir de uma visão de redução de danos (para evitar o “risco” do processo). Existe semelhança com um “contrato de adesão”, onde não há liberdade plena e real igualdade para negociar, apenas de aceitar o que lhe é imposto.

Como destaca Walsh, o direito constitucional a um julgamento público é excluído com o plea bargaining, tratando-se, para a maioria, de um mito, conforme também compreendeu o Juiz Federal americano John Kane. Essa deterioração sistemática que o acordo penal produz é identificada por um coro de juristas dos EUA, que “querem ajustes para regulamentação e controle das negociações; outros pedem uma revisão mais ambiciosa do modo como os procedimentos são conduzidos, agilizando o processo para torná-lo acessível a um maior número de pessoas”.12 Nesse sentido, Langbein13 é categórico: “o plea bargaining é, portanto, um procedimento de julgamento para condenar e declarar culpadas pessoas acusadas de crimes graves”, sem legitimação constitucional, por causa da “garantia oposta, uma garantia de julgamento”. Além disso, prossegue Langbein,14 a negociação é coercitiva e as práticas de tortura e plea bargaining não têm diferença de gênero, apenas de grau.

Portanto, a negociação não pode ser justificada ou legitimada a partir da categoria “autonomia de vontade”. Trata-se de uma base excessivamente porosa e frágil, como apontou com pioneirismo Geraldo Prado15 ao falar da transação penal:

os desníveis socioeconômicos ainda vivos na sociedade brasileira interditam a pretensão de garantir ao sujeito, principalmente ao sujeito investigado/imputado, condições de exercer plenamente suas potencialidades e, pois, posicionar-se conscientemente diante da proposta de transação, compreendendo seu largo alcance como instrumento de política criminal.

Grave erro é a importação “a la carte” de institutos de sistemas de matriz absolutamente distinta, como o modelo common law norte-americano, desconsiderando sua incompatibilidade com o modelo civil law brasileiro, com os princípios que regem a acusação de iniciativa pública, os limites institucionais do ministério público, a indisponibilidade do objeto do processo penal brasileiro, enfim, com nosso desenho jurídico, processual e institucional. Figueiredo Dias16 é claro em rechaçar a importação do plea bargaining porque incompatível com o modelo português (e também com o brasileiro, acrescentamos), na medida em que não coincide com nossa concepção de Estado de Direito, que tampouco é conciliável com o rule of law anglo-saxônico. Logo, é preciso respeitar certos limites metodológicos que infelizmente estão sendo esquecidos nesse debate. Para tratar de direto comparado é preciso saber direito e saber comparar.

Dessarte toda a crítica, resumidamente feita acima, a ampliação dos espaços negociais é uma realidade. Não vislumbramos perspectivas mínimas de uma inversão de sinais. Então por que seguir criticando e lutando para dar visibilidade ao ‘dark side’ da negociação? Para evitar sua ampliação e frear as tentativas de inserção do plea bargaining em reformas futuras. Pensamos que já houve um alargamento (mais do que) suficiente com a inserção do acordo de não persecução penal no art. 28-A, que representa, quando analisado junto com a transação penal e a suspensão condicional da pena, o estabelecimento de um espaço negocial bastante relevante e suficiente, abrangendo com certeza mais de 70% dos tipos penais.17

Na estrutura jurídica e constitucional brasileira, entendemos que não se pode conceber a imposição de uma pena privativa de liberdade sem prévio processo. Nesse ponto, pensamos que o legislador andou bem ao demarcar os limites do acordo de não persecução penal, ainda que tenha errado em outros, como por exemplo, a problemática exigência de haver ‘confessado formal e circunstancialmente’ ou não determinar os efeitos endoprocedimentais do acordo.

Apenas por argumentar, se ampliarmos o espaço negocial já existente, para permitir aplicação de pena privativa de liberdade, houve um estudo prévio sobre o impacto que isso iria representar? Sem dúvida, a primeira impressão é de que o plea bargaining representa imensa economia e agilidade, e o pensamento econômico aplaude. Mas mesmo os adeptos do viés economista precisam reconhecer que existe um sobrecusto gigantesco, que anula a economia feita ou mesmo gera um prejuízo ainda maior: o custo do superencarceramento. Quando o ex-juiz-ex-ministro Sergio Moro apresentou o ‘seu’ pacote anticrime e a proposta de adoção a la carte (e a fórceps) do plea, o fez sem qualquer “estudo de impacto carcerário” da expansão do espaço negocial. Como o nosso sistema carcerário sucateado e medieval iria lidar com isso? Qualquer estudo epidérmico de custos, comprovaria: seria o caos, ou melhor, agravaria o caos já existente. Ora, não se deve legislar primeiro para ver o que vai ocorrer depois... É lamentável como no Brasil não se faz uma análise prévia do impacto das reformas penais e processuais penais, e tampouco se acompanha criticamente suas implementações, para corrigir distorções. Do contrário, teríamos corrigido os erros funcionais dos juizados e partido para uma ampliação da própria transação penal, sem necessidade de criar um novo e problemático instituto (acordo de não persecução penal).

Por derradeiro, entendemos que o espaço de consenso deve ficar limitado a penas iguais ou inferiores a quatro anos, sem possibilidade de aplicação de pena privativa de liberdade sem prévio processo. Parafraseando Carnelutti18, a conclusão sobre os acordos é a mesma a que o mestre italiano chegou ao tratar da prisão cautelar: a negociação sobre a pena é como um remédio muito forte: se bem utilizado, pode salvar o paciente (o processo penal), mas, se houver abuso dela, vai matar o processo penal! 


Notas de rodapé

1 OST, 2001, passim.

2 Utilizaremos aqui apenas a expressão plea bargaining (ou plea agreement) por ser mais representativa e abrangente. Mas, como explica Masi (2016), existem diferentes tipos de barganha: “a) na charge bargaining, o acusado se declara culpado de um crime menos grave que a acusação original; b) na count bargaining, o acusado assume apenas uma parte dentre várias acusações; c) na sentence bargaining, a promotoria se compromete a pedir em juízo determinado benefício na sentença (o que pode ser negado pelo juiz); d) e na fact bargaining o acusado se declara culpado, mas as partes acordam sobre certos fatos que afetarão a forma como o acusado será punido.”

3 WALSH, 2017.

4 LANGBEIN, 2017p. 138.

5 Para além da concepção tradicional e acertada de FAZZALARI, pensamos que o contraditório deve ser considerado ainda como direito a ‘igualdade cognitiva’, isto é, mecanismo processual através do qual se reforça a necessidade da máxima originalidade cognitiva do juiz e, principalmente, para criar as condições de possibilidade de reversão (ou até impedimento de construção) das imagens construídas a partir da versão unilateral do caso penal que lhe é trazida pela acusação/investigação. Contraditório como instrumento de correção da dissonância cognitiva e seus perversos efeitos. Sobre o tema remetemos o leitor para nossa obra Fundamentos do Processo Penal (2021).

6 Neste tema é crucial a leitura de Maurício Zanoide de Moraes (Presunção de inocência no processo penal brasileiro, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2010) e a tríplice compreensão da presunção de inocência, enquanto norma de tratamento, norma probatória e norma de julgamento.

7 No artigo citado.

8 Interessante neste tema o texto de João Paulo Boaventura (2019) disponível no site https://www.conjur.com.br/2019-out-29/opiniao-omissao-provas-acordos-colaboracao-premiada.

9 Sem entrar aqui na complexa discussão sobre ‘que verdade é essa’, qual adjetivo vai ser agregado ao substantivo para salvá-la, ou ainda, e essa é a questão que nos parece nevrálgica: qual o seu ‘lugar’ no processo penal.

10 SCHÜNEMANN, 2013p. 248-249.

11 Para um estudo mais verticalizado de sistemas processuais, remetemos o leitor para nossa obra “Fundamentos do Processo Penal”, (2021). Também é imprescindível a leitura de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, cuja produção neste terreno é bastante profícua, mas especialmente: COUTINHO, 2018, p. 25-62.

12 WALSH, 2017.

13 LANGBEIN, p. 137.

14 Na síntese do autor: “nós coagimos o acusado contra quem encontramos uma causa provável a confessar a sua culpa. Para ter certeza, nossos meios são muito mais elegantes; não usamos rodas, parafusos de polegar, botas espanholas para esmagar as suas pernas. Mas como os europeus de séculos atrás, que empregavam essas máquinas, nós fazemos o acusado pagar caro pelo seu direito à garantia constitucional do direito a um julgamento. Nós o tratamos com uma sanção substancialmente aumentada se ele se beneficia de seu direito e é posteriormente condenado. Este diferencial da sentença é o que torna o plea bargaining coercitivo. Há, claro, uma diferença entre ter os seus membros esmagados ou sofrer alguns anos a mais de prisão se você se recusar a confessar, mas a diferença é de grau, não de espécie. plea bargaining, assim como a tortura, é coercitivo.” (Grifamos) (LANGBEIN, 2017, p. 141).

15 PRADO, 2003, p. 224.

16 DIAS, 2001.

17 Dados preliminares de uma pesquisa que estamos realizando, que já demonstrou que apenas a suspensão condicional do processo e a transação penal, quando confrontadas com os tipos previstos no Código penal, alcançam, respectivamente, 66,57% e 39,53% de espaço negocial. O acordo de não persecução penal amplia significativamente o espectro negocial, considerando a exigência de crimes, sem violência ou grave ameaça, com pena mínima inferior a 4 anos.

18 CARNELUTTI, 1950, p. 75.

REFERÊNCIAS

BOAVENTURA, João Paulo. A omissão de provas e os acordos de colaboração premiada. Conjur, 29 out. 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-out-29/opiniao-omissao-provas-acordos-colaboracao-premiada. Acesso em: 25/05/2021.

CARNELUTTI, Francesco. Lecciones sobre el proceso penal, v. II. Buenos Aires: Bosch y Cia. Editores, 1950.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. In: SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da; PAULA, Leonardo Costa de (org.) Observações sobre os sistemas processuais penais (escritos do Prof. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho; 1). Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018. p. 25-62.

DIAS, Jorge de Figueiredo. Acordos sobre a sentença em processo penal - o "fim" do estado de direito ou um novo "principio"? Porto: Conselho Distrital do Porto, 2001.

FAZZALARI, Elio. Istituzioni di direito processuale. 8ª edição. Ed. Cedam, Padova, 1996.

GOLDSCHMIDT, Werner. Dikelogia – La ciencia de la justicia. De Palma: Buenos Aires, 1986

LANGBEIN, John H. Tortura e plea bargaining. In: GLOCKNER, Ricardo Jacobsen (org.). Sistemas Processuais Penais. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 115-126.

LOPES JUNIOR, Aury. Fundamentos do Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2021.

MASI, Carlo Velho. A plea bargaining no sistema penal norte-americano. Canal Ciências Criminais, 20 nov. 2016. Disponível em: https://canalcienciascriminais.com.br/a-plea-bargaining-no-sistema-processual-penal-norte-americano. Acesso em: 25/05/2021

MORAES, Maurício Zenoide de. Presunção de inocência no processo penal brasileiro, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2010.

OST, François. O tempo do direito. Lisboa: Piaget, 2001.

PRADO, Geraldo. Elementos para uma análise crítica da transação penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 224.

SCHÜNEMANN, Bernd. Um olhar crítico ao modelo processual penal norte-americano. In: GRECO, Luís. (org.) Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 240 a 261.

WALSH, Dylan. Why U.S. Criminal Courts are so dependent on plea bargaining? Side effects include inordinately powerful prosecutors and infrequent access to jury trials. The Atlantic, 2 maio 2017. Disponível em: https://www.theatlantic.com/politics/archive/2017/05/plea-bargaining-courts-prosecutors/524112/. Acesso em: 25/05/2021




Justiça criminal negocial e direito de defesa: os acordos no processo penal e seus limites necessários


Vinicius Gomes de Vasconcellos  

Doutor pela USP. Mestre pela PUCRS. Professor pela UEG e IDP.

Editor-chefe da RBDPP. Assessor de Ministro no STF.

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/9628659956663949

ORCID: 0000-0003-2020-5516

vinicius.vasconcellos@ueg.br


Resumo: Neste artigo, almeja-se assentar a importância da proteção de direitos e garantias nos procedimentos negociais hoje existentes ou em debate para previsão futura, especialmente em relação ao direito de defesa. Para tanto, serão analisados casos julgados pela Supremo Corte dos Estados Unidos que alteraram posições relevantes na temática, de modo a, considerando as relevantes diferenças entre os sistemas, poder ressaltar a necessidade de limites e controles aos acordos penais. A partir de tal premissa, serão expostos pontos problemáticos que carecem de maior atenção e desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial no Brasil, indicando-se possíveis sugestões de reformas.

Palavras-chave: Justiça criminal negocial - Acordos penais - Direito de defesa - Controle judicial.

Abstract: In this article, the aim is to establish the importance of protecting rights and guarantees in criminal agreements procedures that currently exist or are under debate for future creation, especially in relation to the right of defense. For this purpose, relevant cases judged by the Supreme Court of the United States will be analyzed in order to, considering the differences between the US and the Brazilian systems, emphasize the need for limits and controls on criminal agreements. From this premise, problematic points that need more academic and jurisprudential attention in Brazil will be exposed, indicating possible suggestions for reforms.

Keywords: Negotiated criminal justice - Plea bargaining - Right of defense - Judicial control.

Data: 29/06/2021
Autor: Vinicius Gomes de Vasconcellos

“A realidade é que a justiça criminal hoje caracteriza, em regra, um sistema de barganhas, não um sistema de julgamentos”.1 Em tradução livre, essa constatação foi feita pelo Justice Anthony Kennedy em precedente assentado pela Suprema Corte dos Estados Unidos no sentido de ampliar a importância da defesa técnica durante a fase pré-processual, que envolve, em muitos casos, as negociações de acordos. Por óbvio, a situação brasileira ainda está longe dos percentuais altíssimos de condenações obtidas por acordos que ocorrem no modelo estadunidense; contudo, a tendência de expansão dos espaços de consenso no nosso processo penal é marcante, como já destacamos neste Boletim.2 Sem as cautelas devidas, a barganha triunfará entre nós e, embora não sustente uma inconstitucionalidade incontornável no sistema negocial, há muito ressalto os seus riscos e problemas inerentes.3

Diante disso, neste artigo, almeja-se assentar a importância da proteção de direitos e garantias nos procedimentos negociais hoje existentes ou em debate para previsão futura, especialmente em relação ao direito de defesa. Para tanto, serão analisados casos julgados pela Supremo Corte os Estados Unidos (SCOTUS) que alteraram posições relevantes na temática de modo a, considerando as relevantes diferenças entre os sistemas, poder ressaltar a necessidade de limites e controles aos acordos penais. A partir de tal premissa, serão expostos pontos problemáticos que carecem de maior atenção e desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial no Brasil.

Primeiramente, no caso Lafler v. Cooper (2012), a SCOTUS analisou caso em que o réu, acusado de tentativa de homicídio doloso, recebeu proposta de acordo feita pelo MP para confessar e obter uma pena reduzida (51-81 meses). Em contato com o juízo, o acusado admitiu a sua culpa e demonstrou interesse no acordo. Contudo, seu advogado afirmou que a acusação não teria como comprovar o dolo, visto que os tiros teriam sido abaixo da cintura da vítima. No julgamento, o réu foi condenado a pena superior àquela oferecida anteriormente (185-360 meses) e, então, passou a alegar que a assistência técnica deficiente causou prejuízo manifesto ao instruí-lo a não aceitar o acordo. Por maioria de um voto, decidiu-se que a deficiência na defesa acarretou manifesto prejuízo ao imputado, visto que demonstrada uma “razoável possibilidade de que o resultado do acordo teria sido diferente com uma assistência técnica competente” e, assim, determinou-se que o acordo deveria ser novamente oferecido e, se aceito, submetido ao controle judicial.

A divergência afirmou que não haveria direito ao acordo e, portanto, a submissão ao julgamento tradicional não poderia ser vista como prejuízo. Tal posição, semelhante ao majoritariamente aceito no Brasil, deve ser analisada com cautela em um cenário de generalização dos mecanismos negociais, onde a persecução penal precisa, ainda assim, pautar-se pela legalidade, previsibilidade e isonomia de tratamento. Simplesmente afirmar que o réu não pode questionar ilegalidades na fase negocial, porque submetido ao juízo tradicional, é ignorar que o sistema precisa se estruturar de modo a tendencialmente dar respostas isonômicas a casos semelhantes, e não depender de uma discricionariedade incontrolável do representante do MP no caso concreto.

Já em Missouri v. Frye (2012),4 a SCOTUS julgou fato em que o órgão acusatório havia oferecido duas propostas de acordo com redução de pena ao advogado do imputado (uma delas com pena de 90 dias). Contudo, sem ser informado de tais ofertas, o réu confessou os delitos narrados e foi condenado a uma pena de três anos, superior àquelas potencialmente aplicáveis se as negociações tivessem sido bem-sucedidas. Diante disso, o réu impugnou a condenação sob a tese de que a deficiência da defesa técnica prejudicou a sua situação, ao passo que, se informado das propostas, a pena imposta seria inferior. Partindo-se da premissa de que o direito à defesa técnica efetiva deve ser garantido em todas as fases “críticas” da persecução penal (como a de negociações), considerou-se que houve violação e que, em regra, as ofertas de acordos devem ser comunicadas ao imputado.5

A partir de tais casos, pode-se afirmar que o direito de escolher não aceitar o acordo e se submeter ao processo penal tradicional não suprime a necessidade de que o mecanismo negocial adote procedimento legítimo e compatível com a proteção efetiva dos direitos fundamentais, como o direito de defesa.6 Ou seja, ainda que o réu tenha sido submetido ao processo penal ou pudesse fazê-lo, vícios e ilegalidades nos acordos ou nas etapas de sua formação podem contaminar a legitimidade da condenação proferida.

Portanto, embora não concorde com construções de um “novo devido processo consensual”,7 por entender que isso finda por suprimir completamente direitos e garantias desenvolvidas ao longo de séculos, penso que é fundamental avançar no estudo sobre os parâmetros e limites aos acordos no processo penal, de modo a estruturar um procedimento negocial que respeite tais direitos e garantias, ainda que modulados às características e lógicas distintas da justiça criminal negocial. Tendo em vista tais considerações, elenco alguns pontos problemáticos que precisam ser adequadamente regulados em um sistema negocial que se pretenda legítimo.

1. Assistência técnica efetiva durante todas as etapas da persecução penal, inclusive negociações.

A legislação brasileira é precisa ao impor o acompanhamento por advogado ou advogada em todos os momentos. Conforme o § 1º do art. 3º-C da Lei 12.850/13, “nenhuma tratativa sobre colaboração premiada deve ser realizada sem a presença de advogado constituído ou defensor público”. Além disso, o § 2º do mesmo dispositivo, ambos inseridos pela Lei 13.964/19, afirma que “em caso de eventual conflito de interesses, ou de colaborador hipossuficiente, o celebrante deverá solicitar a presença de outro advogado ou a participação de defensor público”. Trata-se de mecanismo que busca evitar situação de indefesa do réu, em hipótese de “insuficiência da defesa técnica nas instruções relacionadas a possível impulso negocial”, como “desprezo ou má condução nas orientações ao cliente no tema do acordo de colaboração”.8 Por autorizar uma intromissão aguda no direito do imputado em escolher defesa técnica de sua confiança, tal instrumento deve ser interpretado com cautela e submetido ao devido controle judicial motivado.

Por óbvio, a assistência da defesa técnica em todos os momentos é fundamental e vai bem a legislação em consolidar tal imposição. Contudo, não se pode sustentar a ideia de que o simples fato de ter sido o réu aconselhado por advogado/a impeça o reconhecimento de qualquer ilegalidade no acordo e nas negociações, ou vício na vontade do réu. Nesse cenário, a própria relação entre advogado e cliente pode ser impactada, pois diversas são as influências possíveis em meio à justiça criminal negocial. Segundo Albert Alschuler, “o sistema negocial é um método inerentemente irracional de administração da justiça e necessariamente destrutivo às relações entre cliente e advogado”.9 Isso ocorre porque em muitos casos o próprio advogado, que deveria informar adequadamente o réu, acaba por tender a facilitar e incentivar a realização do acordo e o consenso do imputado, tanto por razões ilegítimas (como obtenção de benefícios ou honorários rapidamente) quanto legítimas, ao considerar os riscos inerentes a qualquer processo penal.10

Portanto, a efetividade da assistência técnica deve ser assegurada em todos os casos e eventuais deficiências devem ser controláveis pelos tribunais para correção de ilegalidades no procedimento negocial. Além disso, como já sugerido neste Boletim, seria importante regular diretrizes deontológicas para atuação de advogados e advogadas na justiça criminal negocial.11

2. Direito à informação e acesso aos autos investigativos como pressuposto da voluntariedade do imputado no acordo penal.

Para que a decisão do réu em aceitar um acordo e renunciar a direitos fundamentais seja efetivamente voluntária, impõe-se que ela ocorra devidamente informada. É necessário que o imputado tenha conhecimento e compreensão de sua situação em relação à acusação, ao acordo e aos seus direitos, às opções e estratégias processuais possíveis, e às renúncias que realiza ao pactuar com a persecução penal. Conforme a Orientação Conjunta 1/2018 do MPF,

o membro do MPF oficiante deve empregar todos os esforços a fim de bem esclarecer ao interessado e ao seu defensor, desde o início do procedimento, suas tratativas e antes de qualquer ato de colaboração, em que consiste o instituto da colaboração premiada, o respectivo procedimento previsto em lei e nesta Orientação Normativa, os benefícios possíveis em abstrato, a necessidade de sigilo e outras informações pertinentes, em ordem a viabilizar o consentimento livre e informado.12

Consequentemente, para aceitar o acordo com voluntariedade, deve-se ter conhecimento sobre a sua situação diante da persecução penal. Não se pode admitir que a acusação se utilize de meios abusivos ou blefes para influenciar o réu a confessar por acreditar indevidamente que existem provas em um determinado sentido. Trata-se de uma decisão estratégica que envolve uma ponderação de chances e riscos, de modo que “a ausência de conhecimento real dos elementos de convicção colhidos durante as investigações pode incutir no colaborador o temor de ser alvo de acusações que, em verdade, não se sustentariam por absoluta falta de justa causa à ação penal” e dificulta-se a “constituição de um prognóstico sobre a viabilidade da própria defesa em caso de recusa à colaboração”.13

Conforme Mariana Lauand, “deverão, imputado colaborador e seu advogado, outrossim, ter ciência do inteiro teor dos autos antes de decidirem realizar a colaboração processual”.14 Ainda que, diferentemente do sistema estadunidense, a investigação brasileira paute-se pelo princípio da oficialidade e da formalização nos autos, devem ser adotados mecanismos adequados para assegurar o acesso devido e evitar a supressão de elementos pertinentes.15

3. Critérios e controles para a decisão do órgão acusatório em relação a propor/aceitar um acordo penal.

Embora tenha prevalecido nos Tribunais a posição de que os acordos penais não configuram direito subjetivo do imputado que possa ser concedido de ofício pelo juízo, pensa-se que é inadmissível a visão que exclui qualquer possibilidade de controle ao afirmar que se trata de mera discricionariedade da acusação.16 Sem dúvidas, um dos maiores problemas descritos no sistema estadunidense é a ocorrência de abusos por parte de acusações infladas, recusas injustificadas e tratamentos desiguais entre imputados em situações semelhantes.17

É necessário estabelecer normativas internas mais detalhadas para a atuação de representantes do Ministério Público, de modo a assentar critérios e parâmetros sobre admissibilidade dos acordos e, especialmente, benefícios e penas a serem negociadas. Não se pode admitir a estruturação de um sistema em que a busca por isonomia e igualdade na aplicação da lei penal para casos semelhantes não seja um objetivo primordial.

Nesse sentido, vale citar o exemplo italiano. No patteggiamento, mecanismo de barganha, há uma tentativa de limitação à discricionariedade do acusador pela imposição ao promotor da obrigação de justificar a sua recusa, que, se ilegítima, acarretará consequências: “na Itália os motivos da recusa são verificados pelo juiz, que, se entendê-la injustificada, assegurará a redução solicitada pelo acusado, mesmo após o transcorrer de todo o procedimento ordinário, consagrando assim o acordo como direito subjetivo do réu”.18

4. Direito ao recurso e sistemas de controle judicial aos mecanismos negociais.

Como exposto, pensa-se que os mecanismos negociais devem, primordialmente, ser submetidos a controles internos no âmbito do órgão acusatório. Decisões sobre aceitar ou não o acordo e os benefícios possíveis são muito relevantes na persecução penal e, assim, precisam ser tomadas e revisadas colegiadamente. Contudo, isso de modo algum afasta a importância do controle judicial para assegurar a proteção aos direitos fundamentais e evitar abusos, cujo risco é potencializado em um cenário negocial.

Renúncias prévias e genéricas ao direito ao recurso não devem ser admitidas, visto que inviabilizam o acesso à justiça. Segundo Figueiredo Dias:

(...) à renúncia ao recurso no âmbito dos acordos processuais não parece estar subjacente qualquer interesse legítimo; e, pelo contrário, à sua pretendida eficácia poderiam ligar-se perigos duradouros para a subsistência de um processo penal adequado ao Estado de Direito.19

O direito ao recurso sobre a condenação é assegurado no processo penal pelo art. 8.2.h da CADH, devendo ser resguardado em tal situação.20 Eventual impugnação ao acordo pode, a depender da análise do caso concreto, ensejar a sua rescisão, se houver cláusula nesse sentido, mas não pode ser admitida renúncia genérica e prévia ao próprio gravame.

Além disso, no juízo homologatório, é fundamental que ocorra um controle sobre a base fática para a aceitação do acordo.21 A confissão não pode ser fundamento exclusivo da condenação, ao passo que elementos de corroboração precisam justificar a superação da presunção de inocência para autorizar a imposição de uma sanção criminal (ainda que denominada diversamente). Mesmo em mecanismos negociais dirigidos a fatos considerados menos graves, como a transação penal, não se pode admitir a homologação sem qualquer lastro probatório a indicar a ocorrência de fato criminoso e punível, por exemplo.



Notas de rodapé

1 SCOTUS, p. 11, 2012.

2 FALAVIGNO; VASCONCELLOS, 2018.

3 Ver: VASCONCELLOS, 2018.

SCOTUS, 2012.

Sobre isso: ROBERTS, 2013.

6 Ressaltando a importância dos precedentes, mas afirmando que ainda carecem de atenção diversos problemas graves no sistema negocial estadunidense, como abusos acusatórios e falta de acesso a provas e investigações: ALKON, 2014.

7 MENDONÇA, 2017. p. 126.

8 PEREIRA, 2020. p. 233.

9 ALSCHULER, 1975, p. 1.180 (tradução livre).

10 VASCONCELLOS, 2018. p. 403-419.

11 VASCONCELLOS, 2018.

12 Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr5/orientacoes/orientacao-conjunta-no-1-2018.pdf>. Acesso em: 22 mai. 2021. p. 4.

13 PEZZOTTI, 2020. p. 260.

14 LAUAND, 2008, p. 114.

15 Sobre isso: MIRZA MADURO, 2020.

16 VASCONCELLOS, 2020. p. 94-101.

17 MCCANNON, 2015.

18 VASCONCELLOS, 2015. p. 446.

19 DIAS, 2011. p. 97. Em sentido contrário, posicionando-se favoravelmente à renúncia ao direito de recorrer: FONSECA, 2017. p. 132.

20 Sobre isso: ROMERO, 2017. p. 272. Em relação ao direito ao recurso no processo penal, ver: VASCONCELLOS, 2020.

21 O controle judicial sobre o acordo e seus limites são temas complexos, de modo que se remete a: VASCONCELLOS, 2021; DE-LORENZI, 2021.


Referências

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Plea bargaining in Japan

Hiroshi Kawatsu  

Attorney at Law. 

Director, Research Office for Criminal Affairs, Japan Federation of Bar Associations. 

ORCID: 0000-0003-1556-6106 

kawatsu@kasumigaseki.gr.jp 


Abstract: In Japan, the plea bargaining system was introduced with the amendment of the Code of Criminal Procedure in 2016. However, under this structure of Japanese criminal justice, even before the introduction of the plea bargaining system, informal plea bargaining has been practiced, but they were declared illegal by the new legislation. Further legal reforms are needed to ensure the fairness and transparency of the proceedings, and it is also important for the courts to play an independent role from the prosecution.

Keywords: Japanese Law - Criminal Justice - Plea Bargaining - Criminal Procedure.

Resumo: No Japão, o sistema do plea bargaining foi introduzido com a alteração do Código de Processo Penal em 2016. No entanto, sob a estrutura da justiça criminal japonesa, mesmo antes da inovação legislativa, a prática do plea bargaining já existia informalmente, muito embora ela tenha sido declarada ilegal pela nova legislação. São necessárias mais reformas jurídicas para garantir a justiça e a transparência dos procedimentos, e também é importante que os tribunais desempenhem um papel independente do Ministério Público.

Palavras-chave: Direito japonês - Justiça Criminal - Plea Bargaining - Processo Penal.


Data: 29/06/2021
Autor: Hiroshi Kawatsu

1. Plea bargaining system introduced in 2016

In Japan, the Code of Criminal Procedure was amended in 2016 to introduce several new systems, including a plea bargaining system, which took effect in 2019. The plea bargaining system, titled "Agreement on Cooperation with Collection of Evidence and Prosecution," allows public prosecutors to make an agreement with a suspect (a person who has not yet been indicted) or an accused (a person who has been indicted). Under this system, in exchange for the suspect/accused’s cooperation with the public prosecutor on another person's criminal case for a specific crime, the public prosecutor grants the suspect/accused benefits such as non-prosecution. However, another type of plea bargaining, in which the public prosecutor reduces the sentence in exchange for the suspect/accused pleading guilty to his/her crime, was not introduced.

Crimes for which the plea bargaining system can be used include criminal offenses such as fraud and embezzlement, and violations of the Act on Punishment of Organized Crime, the Anti-Monopoly Act, the Financial Instruments and Exchange Act, the Stimulants Control Act and Firearms Control Act. The suspect/accused’s cooperation may include making a statement during an interrogation by a public prosecutor or a police officer, testifying as a witness, and submitting evidence to a public prosecutor or a police officer. In return, the public prosecutor may grant the suspect/accused the benefits of not be indicted, a withdrawn indictment, indictment of a lesser offense, or request for a pre-agreed sentence at trial.

A plea bargain is negotiated between the public prosecutor, the suspect/accused and the defense counsel. The public prosecutor may conduct the negotiations solely with the defense counsel and is prohibited from negotiating with the suspect/accused in the absence of counsel. The police officer is not a direct party in the negotiations, but the public prosecutor is required to confer with the police officer in advance. Judges are not involved in these negotiations or agreements.

When an agreement has been reached, the public prosecutor, the suspect/accused, and the defense counsel shall produce a document stating the contents of the agreement. When the public prosecutor calls a suspect/accused who has entered into the plea agreement as a witness in another person's criminal trial, the public prosecutor is required to request the examination of this document as well. This way, the judge and the defense counsel of the other person will know that the witness is a person who has entered into a plea agreement with the public prosecutor.

2. Background of the introduction of the plea bargaining system

The background of the introduction of such a plea bargaining system is somewhat complicated and unique. This system was not introduced simply because there was a need to strengthen the methods of criminal investigation. Even before the introduction of this system, informal plea bargaining existed in Japan. However, the practice of such informal plea bargaining was unfair and unclear, reflecting the feature of the criminal justice system.

A distinguishing feature of criminal investigations in Japan is that police officers and public prosecutors interrogate suspects for long periods of time and on many occasions. The Japanese Constitution guarantees the right to remain silent and the right to counsel. However, in practice, both police officers and public prosecutors interrogate suspects without allowing defense counsel to be present. Even when suspects exercise their right to remain silent, police officers and public prosecutors continue to interrogate and demand statements from suspects. Moreover, the public prosecutor can arrest and detain the suspect. In principle, an arrest warrant issued by a judge is required to make an arrest, but in 2019, the number of cases in which judges rejected requests for arrest warrants was only 0.1% of the total number of requests. Once arrested, suspects are in custody for up to 72 hours. In addition, the public prosecutor may detain the suspect for 10 days. The judge's permission is required to detain a suspect, but in 2019, the percentage of cases where the judge did not give permission for detention was 5.2% (this percentage was below 1% until 2009). In addition, the public prosecutor may, with the judge's permission, extend the period of detention for up to another 10 days. In 2019, the percentage of cases in which the judge did not grant an extension was only 0.4 percent. The public prosecutor has the discretion whether to indict or not and can decide not to indict a suspect who has pleaded guilty to a crime. On the other hand, in 2019, only 0.2 percent of the cases indicted by the public prosecutor were ruled not guilty by the court. Once the public prosecutor has indicted a suspect, the suspect automatically remains in detention as an accused. The court can rescind the detention of the accused, but the percentage of accused whose detention was rescinded by the court was only 0.4 percent in 2019. The accused has the right to bail, but judges, in accordance with the opinion of the public prosecutor, tend not to grant bail when the accused pleads not guilty, judging that there is a high probability that the accused may conceal or destroy evidence. In 2019, around 90% of accused who pleaded not guilty were not released on bail even after one month from the date of indictment, and the first trial was held without bail. Due to these tendencies of judges, pre-trial arrest and detention functions as means to coerce confessions and statements admitting the public prosecutor’s story and discouraging pleas of not guilty. This practice of detention and bail is known as "hostage justice" and has recently become an internationally known feature of the Japanese criminal justice.

Informal plea bargaining has been conducted within the unique structure of the Japanese criminal justice system as described above. Public prosecutors have demanded that suspects sign confession statements in exchange for the avoidance of prolonged detention in interrogation rooms without the presence of defense counsel. Public prosecutors have also demanded that suspects sign statements admitting the stories that would convict others in exchange for avoiding arrest or bail in interrogation rooms without the presence of defense counsel. When the written statement produced by the public prosecutor is evidence of guilt, courts have almost always admitted the written statement and convicted the accused, even if the same person testifies against the contents of the written statement at trial. Thus, there is a structure in Japanese criminal justice that allows public prosecutors to make informal plea bargains with suspects based on their overwhelmingly dominant bargaining position. Moreover, the fact that such informal plea bargaining took place was rarely made public. Therefore, for a long time, there was no great need for Japanese public prosecutors to institutionalize plea bargaining.

However, one high-profile acquittal case made reform of the criminal justice system inevitable. The accused in that case, Atsuko Muraki, a senior official in the Ministry of Health, Labor and Welfare, was arrested and indicted in 2009 for allegedly instructing her subordinates to produce false official document at the request of an organization with fraudulent purposes. In this case, in addition to Muraki, two other people related to the organization and one of her subordinates were arrested and indicted. All three signing statements admitting to the false story that Muraki was involved in the production of the false official document were released on bail shortly after the indictment. In contrast, Muraki, who had consistently maintained her innocence, was detained for 164 days before being released on bail. In this case, several MHLW employees were interrogated by the public prosecutor without being arrested, and about half of them signed statements admitting the public prosecutor's story. At the trial, however, it became clear that there was an inconsistency between the date and time when Muraki allegedly instructed her subordinates at the request of the organization and the date and time when the document was objectively created. Furthermore, the subordinate testified at the trial that he was forced to sign the statement prepared by the public prosecutor even though he had denied Muraki's involvement during the interrogation, and that he agreed to sign the statement in exchange for bail because he could not bear the pain of detention. In this way, Muraki was acquitted in 2010. However, the case did not end there. It was revealed that the lead public prosecutor in the investigation had falsified the data on a floppy disk, which was evidence in the case. Furthermore, it was revealed that several public prosecutors knew about this and concealed the fact. As a result, a total of three public prosecutors were arrested, indicted, and convicted.

The 2016 reform of the Code of Criminal Procedure was triggered by these prosecutorial scandals. The slogan of the reform was to move away from over-reliance on interrogations and written statements. The most important reform was the introduction of the system of videotaping interrogations. The plea bargaining system was to be introduced as one of the means of evidence collection other than interrogation. However, there were many criticisms of introducing a new weapon for public prosecutors in a reform that was triggered by the prosecutorial scandals. During the Diet deliberations, amid criticisms from lawmakers, the Director of the Criminal Affairs Bureau of the Ministry of Justice expressed the opinion that once plea bargaining is institutionalized, informal plea bargaining will become illegal and evidence obtained through it may be denied admissibility.

3. Practice and issues of plea bargaining

The plea bargaining system became effective in 2019. In the two years since then, there have been only three known cases in which a public prosecutor and a suspect/accused entered into plea agreement. The fact that a plea bargain has been made will not be revealed unless the prosecutor requests the examination of the evidence obtained through the plea agreement. Therefore, it is possible that there are other cases besides these three that are not yet known to the public.

It is also not clear whether there is any informal plea bargaining going on that has been confirmed to be illegal by the institutionalization. Unlike the plea bargaining system, whose procedures are stipulated in the Code of Criminal Procedure, informal plea bargaining often proceeds through unclear procedures and agreements are made in ambiguous forms. Therefore, it is essential to examine, ex post facto, the conversations in the interrogation room to see whether there was any suggestion of benefit or inducement of statements by the public prosecutor. For this purpose, recording of interrogations is effective, but the percentage of cases for which videotaping is mandatory under the 2016 amended Code of Criminal Procedure is less than 3% of all criminal trials. Although public prosecutors may voluntarily record interrogations in other cases as well, they rarely record interrogations of suspects who have not been arrested. However, informal plea bargaining has often taken place with suspects who have not been arrested. In Muraki case, it was revealed that several suspects who had not been arrested signed statements admitting the public prosecutor's story for fear of being arrested themselves. In order to prevent illegal informal plea bargaining, the entire process, including the interrogation of suspects who have not been arrested, should be recorded.

Expanding the scope of recording interrogations is also necessary for the proper operation of the plea bargaining system. A suspect/accused who intends to cooperate in an investigation by entering into a plea agreement has the motive of gaining benefit for himself/herself and may make untrue statements to shift the blame to others. Therefore, in order not to convict an innocent accused based on a false statement, it is essential to carefully judge the credibility of statements made by witnesses who have entered into plea agreements. And to make this possible, it is necessary to examine, by means of objective recording, what kind of statement was initially made and how it was changed by the plea bargaining.

The 2016 amendment to the Code of Criminal Procedure is scheduled to be reviewed in 2022, three years after it took effect, to examine its status of enforcement. Japan Federation of Bar Associations, an organization that all practicing lawyers in Japan are members of, has proposed that the recording system of interrogation should cover the entire process of all cases.

Plea bargaining and similar systems have been introduced in many countries. In Japan, as in other countries, plea bargaining may be useful in investigating organized crime. The most important issue is to establish a mechanism to ensure fairness and transparency of the proceedings and to avoid wrongful convictions. As such a mechanism, the scope of recording interrogations should be expanded and the right of defense counsel to be present during interrogations should be established. Legislation is necessary for this purpose, but it is also important for the courts to play an independent role from the prosecution, as expected by the Constitution.


Notas de rodapé

References

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Os acordos penais como efeito da retórica do catastrofismo: uma análise a partir do plea bargaining estadunidense

Michelle Gironda Cabrera  

Doutora em Direito Socioeconômico e Desenvolvimento pela PUCPR, com pesquisa financiada pela CAPES. Professora de Direito Penal e Processual Penal no Centro Universitário Curitiba e na Faculdade de Pinhais. Professora do curso de Introdução ao Processo Penal do Introcrim. Coordenadora do Grupo de Estudo Antipatriarcalismo do Observatório da Mentalidade Inquisitória. Advogada criminalista.  

Link Lattes: lattes.cnpq.br/5337409618653312  

ORCID: 0000-0001-7301-6650  

michellegironda@hotmail.com


Bárbara Feijó Ribeiro  

Pós-Graduanda em Direito Penal e Criminologia pelo CEI e Introcrim. Graduada em Direito pelo Centro Universitário Curitiba. Estagiária de Pós-Graduação do Núcleo de Política Criminal e Execução Penal (NUPEP) da Defensoria Pública do Paraná. Advogada Criminalista. Associada ao IBCCRIM.  

Link Lattes: lattes.cnpq.br/2351881602377784  

ORCID: 0000-0001-6517-7104  

barbarafribeiro@hotmail.com


Resumo: As relações entre processo penal e justiça negocial tornaram-se bastante estreitas nas últimas décadas. Tal aproximação pode ser explicada pela penetração no Direito e, especialmente, no campo processual penal, de institutos que se relacionam com a ideia de “eficientismo”, o que pode levar, se não se realizarem as devidas reflexões críticas, a uma maximização das esferas mais perversas conexas à instrumentalidade do processo. O texto realiza uma análise crítica a respeito da atual tendência de abertura a um ambiente de negociação penal, crítica especialmente relevante quando se problematiza o atual “estado de coisas” do processo penal brasileiro, ainda longe de se adequar a um modelo acusatório. Tal esforço teórico justifica-se em razão, especialmente, da tentativa de se introduzir, com a Lei 13.964/2019, o instituto do plea bargaining, não tendo sido, contudo, aprovado. 

Palavras-chave: Plea bargaining - Acordo penal - Justiça Negocial - “Lei Anticrime”.

Abstract: The relationship between criminal proceedings and negotiated justice has grown closer in recent decades. This approach can be explained when investigating the penetration in law and, especially, in the criminal procedural field, of institutes that are related to the idea of “efficiency”. Efficiency can lead, if the necessary critical reflections are not carried out, to the maximization of the most perverse spheres connected to the instrumentality of the process. The text seeks to carry out a critical analysis of the growing trend of proceedings to a negotiating environment, a criticism that is especially relevant when discussing the current “state of affairs” of the Brazilian criminal process, still far from being adequate to an accusatory/adversarial model. Such theoretical effort is justified, in particular, due to the attempt to introduce, with Law 13.964/2019 the institute of plea bargaining, having not, however, been approved in Brazil.

Keywords: Plea bargaining - Criminal agreement - Negotiated Justice - “Anti-crime Law”.

Data: 29/06/2021
Autor: Michelle Gironda Cabrera e Bárbara Feijó Ribeiro

1. Introdução

É latente a demanda por uma expansão dos espaços de negociação no processo penal brasileiro. Nesse contexto, foi apresentada a proposta de implementação do plea bargaining a partir da inserção do art. 395-A ao CPP pelo Anteprojeto do chamado “Pacote Anticrime” (PL 882/20191 e 1.864/20192) e do art. 283, que ainda se estuda no PL 8.045/20103. Apesar de o plea bargaining não ter sido aprovado, entendeu-se por necessária a discussão central abordada por este texto, considerando que a implementação de acordos de barganha é uma tendência no Direito Processual Penal brasileiro. Um dos exemplos disso está no PL 8.045/2010, que busca implementar um novo CPP no país. Sustenta-se como hipótese de trabalho, que os reflexos por uma demanda para ampliação dos espaços de negociação no campo processual penal, sem as necessárias reflexões críticas a respeito do sistema brasileiro, ainda profundamente desigual e de viés inquisitorial, pode levar a um completo “desastre, retirando ainda mais o pouco de democracia processual que restou depois da ‘americanização à brasileira’ promovida nos últimos anos” (COUTINHO, 2019).  

2. A Autonomia da acusação no contexto norte-americano             

O Direito estadunidense possui matriz de common law e cultura jurídica processual penal adversarial, apresentando um modelo de justiça criminal, contudo, que não está livre de críticas. No sistema adversarial, a iniciativa probatória encontra-se a cargo das partes, cabendo ao juiz o papel de assegurar a observância das regras processuais, com uma postura radicalmente limitada em relação à atuação de ofício. O acordo de barganha nos Estados Unidos teria começado de maneira sólida no início do século XIX e sua história pode ser dividida em duas partes: a primeira, contemplando os primeiros três quartos do século XIX, quando, no estado de Massachusetts, os acusadores tinham o poder de negociar as acusações sem a participação do juiz. Tais acordos eram firmados, sobretudo, nos casos de homicídio e nos que envolviam a liquor law e permitiam a negociação da modalidade conhecida como charge bargaining. Posteriormente, deve-se atentar ao último quarto do século XIX, ocasião em que se ressalta como forma mais comum do plea bargaining, o sentence bargaining (FISHER, 2000). O reconhecimento do plea bargaining deu-se inicialmente, em 1970, pela Suprema Corte estadunidense no caso Brady v. United States, que decidiu que “apresentar uma confissão de culpa para evitar os riscos de uma condenação mais grave não torna esse acordo constitucionalmente inválido como um produto de coação” (UNITED STATES SUPREME COURT, 1970). Em suma, a decisão concluiu que, apesar da motivação da parte ao confessar fosse a de evitar uma condenação à pena de morte, a decisão do acusado em aceitar o acordo teria sido voluntária e estratégica. A Suprema Corte considerou que não havia evidência que apontasse que a confissão do acusado não fosse verdadeira e a aceitou.  

A figura do acordo de barganha teria surgido em razão do elevado número de crimes e da sobrecarga do Poder Judiciário estadunidense, sendo essa uma resposta supostamente mais célere e mais econômica para a resolução de conflito penal. Atualmente, o plea bargaining é utilizado como forma de solucionar aproximadamente 95% (DEVERS, 2001) dos casos estaduais e federais naquele país.1  O plea bargaining possui diversos formatos, por permitir várias formas de acordo entre as partes, sendo os mais comuns o charge bargaining e o sentence bargaining:  no primeiro, as partes negociam a acusação feita ao réu, podendo ser reduzida para a imputação de um crime menos grave ou, havendo vários crimes, o prosecutor poderá abrir mão de o acusar dos demais crimes. Já o sentence bargaining é uma negociação da sentença, na qual a acusação concordaria com a recomendação ao magistrado que reduzisse a pena do réu, caso esse confessasse o crime que lhe foi imputado.   

Com relação à formação estrutural do Ministério Público nos Estados Unidos, em nível federal, o país possui o Procurador-Geral da República (The United States Attorney General), que é indicado pelo Presidente da República e aprovado pelo Senado, tendo como função principal a de chefe do Departamento de Justiça e do United States Attorney, que formam um total de 94 acusadores, também escolhidos pelo Presidente da República e aprovados pelo Senado.  A nível estadual, o State Attorney General que, na maioria dos estados, é eleito por voto facultativo pelo período de quatro anos, representando assim o povo e agindo em nome dele, o que justificaria um poder maior aos membros da acusação. Esse Procurador-Geral do Estado teria a dupla função de defender os interesses do estado e promover o interesse público (SIMON, 1990, p. 13-28).  Nota-se, portanto, que o sistema processual penal estadunidense dá à figura do prosecutor uma maior autonomia, permitindo inclusive que o State Attorney General defina as diretrizes e tarefas que serão cumpridas no âmbito do seu estado. Nesse sentido, as ideias do próprio State Attorney e daqueles cidadãos refletirão na política criminal, a partir dos crimes que serão priorizados pelos procuradores, quais delitos a procuradoria deixará de denunciar e quais desses crimes permitirão a oferta do plea bargaining ao acusado. Assim, é possível analisar que essa autonomia dada aos promotores acaba lhes concentrando o poder de decidir quais casos serão julgados pelo Judiciário, quais serão passíveis de acordos penais e permite até que “construam” sentenças nos acordos de sentence bargaining (FIONDA, 1995, p.1 apud KERCHE, 2018, p. 573).

Roberts (2020) analisou os fatores que tornam o plea bargaining tão atraente aos imputados, a ponto de abrirem mão de diversos direitos constitucionais para aceitar a proposta. A autora observou que, mesmo quando o imputado é inocente, os riscos que o processo penal estadunidense apresenta a ele são grandes, tornando, assim, ainda mais propício aceitar um acordo que oferece uma sentença penal relativamente certa e que pode potencialmente diminuir os prejuízos da perda de um julgamento. Vale ressaltar que os riscos do processo penal estadunidense conseguem ser ainda mais graves, pois o risco de ser condenado pode levar a uma pena de prisão perpétua ou até a uma pena de morte, a depender do estado.  

Grande parte da literatura penal estadunidense critica o modelo negocial do plea bargaining, sendo a principal dessas críticas a de que os acordos levam à condenação de inúmeros réus inocentes e que as partes não conseguem realizar um acordo de maneira equânime diante da visível disparidade de armas entre as partes, gerando, assim, uma coação ao imputado, passível de comparação com as práticas medievais de tortura, conforme aponta Langbein (1978, p. 12, tradução livre): “certamente, nossos meios são muito mais polidos; não utilizamos rodas, parafusos de polegar, botas espanholas para esmagar suas pernas”. Porém, não restam muitas dúvidas de que a utilização do plea bargaining torna “extremamente custoso para um acusado reivindicar seu direito à salvaguarda constitucional do julgamento” e que “esse diferencial da sentença, é o que torna o plea bargaining coercitivo” (LANGBEIN, 1978, p. 12, tradução livre). O autor, utilizando a analogia do instituto em análise com a tortura medieval, sem que tal comparativo produzisse algum anacronismo, ressalta que o plea bargaining, como a tortura, é coercitivo:

como os europeus medievais, os americanos agora estão operando um sistema processual que envolve condenação sem adjudicação. A máxima dos Glosadores medievais, agora descreve apropriadamente o direito americano: confessio est regina probationum, a confissão é a rainha da prova (LANGBEIN, 1978, p. 13-14, tradução livre).

Caso se recorra à Constituição Americana em busca de fundamento para o plea bargaining, a procura será em vão: “ao invés disso, encontrará – em um lugar não menos consagrado do que a Declaração de Direitos (Bill of Rights) – uma garantia oposta, a garantia ao julgamento” (LANGBEIN, 1978, p. 9, tradução livre). Ao contrário do que ocorre no plea bargaining, a Sexta Emenda estabelece que “em todos os processos criminais, o acusado terá o direito de ...julgamento... por um júri imparcial” (LANGBEIN, 1978, p. 9, tradução livre). Em que pese o texto de Langbein seja do ano de 1978, sua análise segue sendo atual, na medida em que grande parte da doutrina crítica norte-americana considera que o instituto do plea bargaining permanece com as mesmas falhas apontadas pelo autor em sua época, mantendo-se como um instituto utilizado como meio de coagir os acusados. 

É necessário, porém, reconhecer que o processo penal estadunidense apresenta diversas garantias para o imputado, considerando que as regras processuais daquele país permitem que as partes firmem o acordo em qualquer fase da persecutio até o momento da sentença penal, admitindo, assim, que, dependendo das provas produzidas nos autos, a acusação apresente nova proposta de acordo com maiores benefícios ao réu. Essa garantia é necessária, tendo em conta que, se a negociação fosse permitida somente em momento anterior ao início da instrução probatória do processo, esta ocorreria de forma precária e prejudicaria a defesa que, surpreendida com a acusação feita ao réu e com um prazo menor do que o que a acusação teve para realizar as investigações, não teria como produzir ou analisar possíveis provas que inocentassem o réu.

Para além de tudo isso, é necessário reconhecer no plea bargaining estadunidense a obrigação do Ministério Público de apresentar à defesa todas as provas produzidas que possam ser favoráveis ao acusado (full disclosure), podendo, inclusive, a ocultação de provas gerar a nulidade do julgamento.2 Essa garantia foi reconhecida no caso Brady vs. Maryland, momento em que a Suprema Corte decidiu que a retenção pelo Governo de evidências relevantes para o curso do processo viola o direito constitucional do acusado ao devido processo legal. 

Outra análise relevante da literatura estadunidense traz a expressão “Mc Justice” que, em suma, considera que os acordos de barganha seriam uma forma rápida de justiça penal. Bohm (2006, p.129) faz uma analogia entre o instituto do plea bargaining e a experiência de ir a um restaurante da rede mundial de fast food McDonald’s, dando o seguinte exemplo: quando se pede um Big Mac (o lanche mais tradicional), o pedido demorará alguns instantes para ser feito, porque esse hambúrguer é feito de maneira uniforme. Porém, quando o cliente solicita a preparação de algo diferente do padrão – como retirar um dos ingredientes – o atendente solicita que se aguarde ao lado do balcão, porque seu pedido demorará mais alguns minutos para ficar pronto. Assim, Bohm verifica que esse “pedido especial” acaba atrasando a linha de produção e diminuindo a eficiência do fast food, entendendo que a mesma coisa acontece com o sistema de justiça criminal quando o réu pede algo “diferente do normal”, como um julgamento. Por ser uma forma de justiça mais célere, e com promessas de causar menos riscos ao imputado, ele acaba optando pela barganha e essa, na visão do autor, seria a justificativa para o acordo ser o método de resolução de aproximadamente 95% dos casos penais no país. Bohm também analisa que a “McDonaldização” do sistema de justiça diminui os custos governamentais com o processo e torna o sistema extremamente uniforme, sem surpresas. 

O plea bargaining, apesar das críticas, segue sendo perpetrado no Direito estadunidense há muitos anos. Ainda, a criação da barganha se justificaria pela superlotação do sistema Judiciário, pela necessidade de um método de resolução de conflito mais célere e por se mostrar mais econômico. Porém, ao longo de anos de existência, não parece que a barganha pôde resolver nos Estados Unidos todos esses problemas. Além disso, verifica-se que o sistema de justiça estadunidense mantém a maior população carcerária do mundo – o que claramente acarreta uma despesa econômica extremamente significante. Considerando que a barganha é a forma de resolução da maioria dos conflitos penais no país, pode-se concluir que esse instituto é um dos principais responsáveis pelo encarceramento em massa e que a celeridade proposta pelo plea bargaining acarreta um sistema processual penal artificial, evitando a fase de julgamentos e tornando o processo uma “linha de produção padrão” (BOHM, 2006, p. 129), contribuindo para a manutenção de estruturas de significação primordiais de categorias processuais penais autoritárias, pois avessas às garantias constitucionais do réu.

3. Os Mitos Que Envolvem Os Acordos Penais 

O instituto da barganha é repleto de mitos, sendo esta uma característica extremamente marcante do sistema inquisitório, que sempre se utilizou de mitos, ídolos e culto ao herói como signos de representação de uma suposta segurança, especialmente através da construção de verdades absolutas e dogmas – portanto, afirmações irrefutáveis (BAQUEIRO, 2019, p. 420). Dentro do sistema penal, a figura edificada do ídolo é desempenhada pelo juiz e por vezes pelo promotor, que seriam capazes de “vencer o ‘mal” (BAQUEIRO, 2019, p. 423), sendo esse “mal” representado pelo réu e sua defesa.  

O plea bargaining, assim, traria “a doce ilusão da ‘verdade’ alcançada”, visto que a confissão do sujeito busca o conforto de que o culpado foi punido (BAQUEIRO, 2019, p. 423). Nos acordos de barganha, a figura do herói é representada pelo Ministério Público, “o homem dotado de superpoderes, capaz de grandes feitos, vindo de uma raça superior, pois extrai dos inimigos a ‘verdade’ que ele tanto buscava ocultar” (BAQUEIRO, 2019, p. 423). Gloeckner (2018), ao analisar o autoritarismo no processo penal brasileiro e elencar diversos estudos sobre o tema, aponta as classificações de Ricardo Silva (2004, apud GLOECKNER, 2018, p. 102-103), entre elas a de que a narrativa autoritária brasileira parte da ideia do “catastrofismo”, sendo esse o pensamento de “uma crise permanente que assolaria a sociedade brasileira” e que “a urgência de respostas e soluções não permitiria grandes reflexões”, o que autoriza medidas urgentes. Com relação a tais medidas, Gloeckner (2018, p. 102-103) aponta que “a emergência se constitui como uma estrutura que sempre está presente nos discursos penais, seja como legitimador externo de políticas criminais, seja como encaminhador de demandas que almejam reconhecer a ineficiência do sistema de justiça criminal”. Assim, a ideia da urgência seria “legitimatória de novas demandas autoritárias” ou, no limite, “internamente deslegitimante (pela insuficiência) do sistema penal em garantir a segurança de bens, pessoas ou da própria estabilidade política” e que “a ideia de catástrofe convoca o aparecimento da emergência” (GLOECKNER, 2018, p. 102-103).

4. Considerações Finais

Se o discurso que sustenta a justiça negocial é justamente o de vivermos em um estado de crise institucional do sistema de justiça penal, a solução colocada como medida urgente (dentre outras, o plea bargaining), merece atenção – e reflexão crítica. Em razão dessa suposta urgência, sustentam-se discursos superficiais para implementação da barganha, que não levam em consideração dificuldades estruturais do modelo processual penal brasileiro e, especialmente, sua discrepância em relação ao modelo acusatório – que serviria de base para implementação do instituto. O texto buscou demonstrar que a justificativa de um estado de urgência para implementação de um instituto negocial como esse, sem as devidas reflexões críticas, mostra-se uma clara medida eficientista, compreendida, em última análise, como medida de cunho autoritário, uma vez que exacerba as desigualdades entre as partes.


Notas de rodapé

1 Sobre a elevada quantidade de casos resolvidos a partir do plea bargaining, ver United States Courts (2019). 

2 Sobre a nulidade do julgamento pela retenção de provas, ver Ozório de Melo (2012).

Referências

BAQUEIRO, Fernanda Ravazzano Lopes. Verdades, dúvida e (in)certezas: a necessidade da edificação dos mitos no autoritarismo e as ilusões oriundas do plea bargain. In: NUNES DA SILVEIRA, Marco Aurélio (Org.); COSTA DE PAULA, Leonardo (Org.). Mentalidade Inquisitória e Processo Penal No Brasil: escritos em homenagem ao Prof. Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, v. 5. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2019.

BOHM, Robert M. “Mc Justice”: on the McDonaldization of criminal justice. Justice Quarterly, v.  23, n. 1, p. 127-146, mar. 2006.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Plea bargaining no Projeto Anticrime: crônica de um desastre anunciado. Boletim IBCCRIM – Especial Pacote Anticrime, n. 317, abr. 2019.

DEVERS, Lindsey. Research Summary: plea and charge bargaining. Bureau of Justice Assistance. U.S. Department of Justice, Arlington, jan. 2011. Disponível em: https://bja.ojp.gov/sites/g/files/xyckuh186/files/media/document/PleaBargainingResearchSummary.pdf. Acesso em: 08 jun. 2021.

FISHER, George. Plea bargaining’s triumph. Yale Law Journal, v. 109, p. 857-1086, 2000.

GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro, v. 1. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018.

KERCHE, Fábio. Independência, Poder Judiciário e Ministério Público. Cad. CRH, Salvador, v. 31, n. 84, p. 567-580, dez. 2018.

LANGBEIN, John H.,Torture and Plea Bargaining, The University of Chicago Law Review, vol. 46, n. 1, 1978. Disponível em: https://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/543/. Acesso em: 08 jun. 2021.

OZÓRIO DE MELO, João. Promotoria esconde provas e condenação é revertida. Conjur, 11 jan. 2012. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-jan-11/eua-condenacao-revertida-promotoria-esconder-evidencias. Acesso em: 08 jun. 2021.

ROBERTS, Anna. Convictions As Guilt. Fordham Law Review, Forthcoming, v. 88, n. 6, p. 2501-2550, 2020. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3389597. Acesso em: 08 jun. 2021.

SIMON, John Anthony. Considerações sobre o Ministério Público Norte-Americano. Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 23, p. 13-28, 1990.

UNITED STATES COURTS. U.S.D.C. – U.S. District Courts. Criminal Defendants Disposed of, by Type of Disposition and Offense, During the 12-Month Period Ending September 30, 2019, USC, 2019. Disponível em: https://www.uscourts.gov/sites/default/files/data_tables/jb_d4_0930.2019.pdf. Acesso em: 08 jun. 2020.

UNITED STATES SUPREME COURT. Brady v. United States, 397 U.S. 742 (1970). Justia. Disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/397/742/. Acesso em: 08 jun. 2021.

Plea bargaining: o perigoso caminho em direção ao alargamento das práticas de negociação penal

André Peixoto de Souza 

Doutor e Mestre em Direito do Estado pela UFPR. Doutor em Filosofia, História e Educação pela UNICAMP. Professor pesquisador do PPGD-UNINTER. Professor de Economia Política e Psicologia Jurídica nas Faculdades de Direito da UFPR, UNINTER e UTP. Professor de Filosofia e História do Direito na EMAP e no ICPC. 

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/6730905740474677

ORCID: 0000-0002-6679-7417 

andrepeixotodesouza@gmail.com


Kauana Vieira da Rosa Kalache

Mestre em direito penal pela UCLA. Mestre em Teoria e História da Jurisdição pela UNINTER. Especialista em Criminologia e Políticas Criminais pelo ICPC. Professora na Fesp e advogada criminalista. 

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/6006479698824490

ORCID: 0000-0001-5206-6739 

kalache2015@lawnet.ucla.edu


Resumo: O presente texto pretende analisar criticamente o instituto do plea bargaining, mais especificamente os problemas envolvendo critérios e procedimentos para o estabelecimento da negociação penal no sistema de justiça criminal, bem como o impacto social das negociações nas quais estão inseridas. Terá como referência o sistema de justiça norte-americano, que serviu de inspiração para o projeto nacional no que tange ao referido instituto. A análise se justifica, uma vez que o alargamento da esfera negocial penal no Brasil parece ser uma tendência imparável. A pesquisa se deu mediante o emprego do método de abordagem dedutiva e do método de procedimento sistêmico, auxiliado pela análise comparativa entre os sistemas de justiça norte-americano e brasileiro.

Palavras-chave: Negociação penal - Plea bargaining- Voluntariedade- Legalidade- Lei Anticrime.

Abstract: The text has the objective of critically analyzing the plea-bargaining’s practices, more specifically the issues regarding the lack of criteria and regulations when offering a deal, as well as the social impact of the negotiations in a democratic society. The North American justice system will be used as reference, since it has served as an inspiration to the Brazilian Project. The research is justified once criminal negotiation seems to be an unstoppable tendency in the Brazilian system.

Keywords: Criminal Negotiation - Plea Bargaining - Willingness- Fairness- Anticrime Law.  

Data: 29/06/2021
Autor: André Peixoto de Souza e Kauana Vieira da Rosa Kalache

A negociação penal, em nosso sistema de justiça criminal, não é recente, tendo sido inserida no ordenamento jurídico pátrio através da lei dos juizados especiais com o instituto da transação penal e da suspensão condicional do processo. O reforço da prática ocorreu com a popularização da colaboração (delação) premiada e do acordo de leniência, em 2013. Soma-se a esses modelos de negociação a possibilidade inovadora do acordo de não persecução penal, como forma de alargamento das possibilidades de transação penal (Art. 28-A, CPP, inserido pela Lei 13.964/19).

O racional por trás de tais medidas é sempre o mesmo: a busca pela celeridade e eficiência do sistema de justiça criminal – como resume a frase de abertura da apresentação do instituto do acordo de não persecução penal elaborada pelo Ministério Público Federal - Acordos de não persecução penal. “Investigações mais céleres, eficientes e desburocratizadas.” (2020).  Para apoiadores das medidas, cria-se espaço de consenso no que se refere à justiça criminal, para além do âmbito do JECrim.

O acordo de não persecução penal foi incluído às práticas negociais, através da lei 13.964/19, alargando as possibilidades de acordo penal. Assim sendo, antes de formalizada a acusação, havendo a confissão por parte do investigado acerca do crime discutido, poderá ser o acordo proposto pelo Ministério Público. A proposta deverá ser homologada por juiz competente, o qual analisará a adequação, proporcionalidade e a voluntariedade do acusado na sua celebração. Cumprido o acordo, há a extinção de punibilidade. O instituto é muito semelhante ao plea bargaining, porém, com aplicabilidade reduzida.

As críticas acerca desta nova possibilidade de negociação são várias. Entre elas destacam-se a inobservância ao princípio da presunção de inocência ao exigir a confissão do investigado para celebração do acordo, a unilateralidade de suas condições, determinadas e propostas pelo Ministério Público, e a impossibilidade de propositura de acordo em crimes que envolvem habitualidade, questionando-se a eficácia da negociação em casos envolvendo organizações criminosas.

Aury Lopes Jr. é enfático ao afirmar que entende a necessidade de implementação de mecanismos que otimizem o defasado sistema de justiça brasileiro – inclusive compreendendo a negociação penal como “tendência imparável para a qual devemos estar preparados” (LOPES JR., 2020, p. 871). Todavia, não nega a necessidade de observância de princípios garantidores de direitos individuais e limites à atuação da acusação nesse processo, pois “a lógica negocial banalizada transforma o processo penal num mercado persa (...). Constitui, também, verdadeira expressão do movimento da lei e ordem (...) fomentando a panpenalização e o simbolismo repressor.” (2020, p. 870).

Finaliza a sua crítica com um convite à reflexão acerca do modelo de justiça negocial a ser adotado em nosso sistema. “Qual o espaço negocial que estamos dispostos a implantar no Brasil, diante da nossa realidade processual e, principalmente, o nosso sistema carcerário e qual será o impacto? Caminharemos em direção ao modelo norte-americano de plea bargaining?” (Ibid, p. 872).

Após fazer a reflexão proposta, cuja síntese é a de necessidade de afastamento do modelo norte-americano de negociação penal, há que se constatar que os sistemas processuais em ambos os países são completamente diferentes e o nosso sistema, pseudo-acusatório, bem como nossas regras processuais, são incompatíveis com a negociação penal nos moldes do plea bargaining.

Porém, para além da incompatibilidade sistêmica, o instituto negocial norte-americano é também extremamente maléfico para a sociedade democrática de direito, pautada em princípios constitucionais de garantias a direitos individuais (BOBBIO, 1992; FERRAJOLI, 2000), uma vez que infringe questões envolvendo a voluntariedade e legalidade dos acordos penais. Assim sendo, seus efeitos para a referida sociedade são devastadores, com a constatação de práticas de justiça criminal seletivas, superencarceramento e maior incidência de erros judiciais. Este último é o enfoque dado à análise do modelo norte-americano de negociação que passa a ser realizada.

Críticas acerca do plea bargaining norte-americano

Para George Fisher não há verdadeiramente um marco histórico social acerca da popularização e propagação do instituto em território norte-americano, havendo sim uma atuação fundamental das partes interessadas para a implementação da negociação (leia-se promotores, defensores públicos, juízes e governantes – abarcados aqui legisladores), e sua pulverização pelo sistema de Direito norte-americano (FISHER, 2000, p. 01).

Além disso, o gigantesco movimento migratório em prática no país, com a chegada anual de milhares de novos habitantes naquele território, juntamente com o movimento industrial, contribuíram para que o número de casos criminais se elevasse de forma significativa, exercendo grande influência para a adoção de meios mais eficazes e menos custosos ao erário público para obtenção da “justiça”.

Isso sem mencionar as políticas criminais travestidas de guerra ao crime, mas com objetivos seletivos e higienistas, que resultaram na supercriminalização de condutas e na maior população carcerária mundial (WAQUANT, 2011).

Não obstante a isso, os Estados Unidos enfrentam duras críticas quanto ao modelo corrente do plea bargaining, sendo acusado, inclusive, de fazer uso de tais práticas para selecionar e perseguir minorias indesejadas. Acusa-se o sistema de violação do princípio balizador do processo penal, qual seja, o direito constitucional ao devido processo legal [due process of law], com a consequente ocorrência do encarceramento em massa. 

A ausência de defesa técnica eficiente é apontada naquele sistema ante à necessidade dos defensores públicos em manter seus agentes financeiros patrocinando seus escritórios e atividades, a busca na manutenção da boa relação com a promotoria e juízes e, por fim, o excesso de trabalho a que estes profissionais estão submetidos. (FISHER, 2000, p. 1063).

O excesso e abuso de poder da acusação nas negociações também são criticados, já que  grandes poderes negociais alinhados ao objetivo punitivista da política criminal do Estado caracterizam táticas prejudiciais à ampla defesa e à presunção de inocência, entre elas a “superqualificação” dos crimes impostos aos acusados, a prática do overcharging [múltiplas acusações], violações à Brady Rule1 e a utilização de prisão cautelar durante o processo de negociação como forma de intimidação do acusado (GROSS, 2008, p. 940). Há também o alto grau de questionabilidade das provas utilizadas pela acusação (MEDWED, 2010, p. 1539), bem como a implementação de métodos coercitivos para obtenção de confissão (BISHARAT, 2014, p. 791; PETEGORSKY, 2013).

Aponta-se também a perda de padrões processuais para reincidentes como um grande problema, uma vez que estes acusados se encontram em posição muito inferior durante a fase negocial do que aqueles sem passagem pelo sistema de justiça criminal. Alguns princípios norteadores do processo penal não são oponíveis ao acusado reincidente em audiências de “probation revocation” [revogação de liberdade condicional] (BISHARAT, 2014, p. 786).

Isso ocorre porque existe uma certa previsibilidade de reincidência do agente pela sua origem, o crime cometido, o bairro que mora, suas conexões pessoais, entre outros. Assim, havendo de fato a reincidência do agente, com a iminência de audiência de revogação de liberdade provisória, em que há a mitigação de princípios e garantias processuais – a exemplo da admissão de “hearsay” - a acusação consegue acordos muitas vezes nos mesmos moldes do que o resultado de uma condenação por júri na infração primária do acusado (BISHARAT, 2014, p. 786).

A desinformação quanto aos efeitos colaterais de uma confissão de culpa também figura entre práticas criticadas, uma vez que a legislação obriga advogados a informarem seus clientes apenas sobre as consequências diretas da confissão (tais como o valor para pagamento de multa e o tempo de aprisionamento resultante da condenação), estando excluída a obrigação de se discutir com o cliente as consequências colaterais (CHIN; HOLMES JR., 2002, p. 699). As consequências colaterais de uma confissão que resultem em condenação podem representar um fardo muito maior do que a penalidade originalmente imposta pelo fato praticado.

A ausência de um juiz efetivamente garantista para homologação de guilty plea figura, por fim, entre as duras críticas feitas ao sistema ante as diversas denúncias de violações de direitos e garantias constitucionais, baseadas em má conduta de juízes quando da homologação de acordos (BERNIK; LARKIN, 2014).

Os estreitos laços com os membros do ministério público, a ideologia do “tough on crime” [guerra ao crime] e o interesse na celeridade e economia processual fazem com que grande parte dos juízes criminais norte-americanos, além de coniventes com abusos e ilegalidades praticados em sede de negociação, também se utilizem de coerção para homologação de guilty pleas (KLEIN, 2004, p. 1351).

Muito criticada e controversa, a prática de plea bargaining é uma realidade a qual o sistema de justiça criminal norte-americano parece não ter como reverter, sob pena de um colapso, opinião compartilhada por defensores e opositores ao sistema.  “[Plea bargaining] is not some adjunct to the criminal justice system; it is the criminal justice system”2 (SCOTT; STUNTZ, 1992).

Para onde caminhamos?

A questão proposta por Aury Lopes Jr. permanece: que caminho seguir ou para onde caminhamos? Não precisamos ir muito longe para constatar a utilização da negociação penal enquanto ferramenta de coação do acusado em nosso sistema, conforme práticas denunciadas no âmbito da delação premiada envolvendo casos da “Operação Lava-Jato”. Pode ser citada a utilização de prisões cautelares como forma de coação para que se obtenha a colaboração do preso, ocasião em que “respeitados juristas identificam a utilização das prisões preventivas como instrumento de pressão para delação.” (FABRETTI, 2018, p. 294).

Isso porque na colaboração premiada, diferente do que ocorre nas formas de negociação concernentes ao juizado especial, as quais preveem apenas a possibilidade de pena restritiva de direito ou multa, é permitida negociação de pena de encarceramento, a qualquer momento, até mesmo na fase de execução.

Como exemplo podemos citar os casos envolvendo pareceres da Procuradoria Geral da República da 4a Região, os quais recomendavam a constrição da liberdade dos acusados ante “possibilidade real de o infrator colaborar com a apuração da infração penal” (CANÁRIO, 2014).

Pauta-se a aplicação da coação em um dos requisitos da prisão preventiva, qual seja a conveniência da instrução criminal, conforme defendido por procurador federal para a manutenção de constrições à liberdade:

A conveniência da instrução criminal mostra-se presente não só na cautela de impedir que investigados destruam provas, o que é bastante provável no caso do paciente, mas também na possibilidade de a segregação influenciá-lo na vontade de colaborar na apuração de responsabilidade, o que tem se mostrado bastante fértil nos últimos tempos (CANÁRIO, 2014). Grifo nosso.

O próprio procurador afirma o sucesso da prisão provisória enquanto meio de obtenção de colaboração do acusado. O escancaramento da detenção do investigado como técnica de colaboração para resolução do conflito penal, em situações sob o holofote da mídia em que os acusados possuem bons e caros defensores – como era a situação dos acusados na operação Lava-Jato - faz refletir sobre o tratamento dado aos casos e acusados de crimes em que não há atenção da mídia e cujas pessoas investigadas muitas vezes sequer têm advogado constituído.

Ademais, vivemos um sistema processual pseudo-acusatório – de fase investigativa inquisitorial, cabe lembrar –, onde juiz é parte, inclusive imparcial em alguns casos. Comportará o Estado de direito pátrio o afrouxamento de garantias constitucionais – como os da ampla defesa e da jurisdicionalidade – advindos da ampliação da negociação penal nos moldes estadunidenses?

Por outro lado, cabe refletir se já estaríamos replicando em parte o racional por trás da expansão da esfera negocial no sistema norte-americano. Se já seríamos um mercado persa de negociação da pena no âmbito negocial, mesmo que de alcance reduzido. Se a tendência é a expanção do comércio, possibilitando a negociação sem a limitação da pena hoje existente, em qualquer fase processual. Nos moldes atuais, com a vigência dos institutos da transação penal, do acordo de não persecução penal, da suspensão condicional do processo e da delação premiada, “se fizermos um estudo dos tipos penais previstos no sistema brasileiro, e o impacto desses instrumentos negociais, não seria surpresa alguma se o índice superasse a casa dos 70% de tipos penais passíveis de negociação, de acordo”, isso caso não se respeite o limite de pena imposto atualmente. (LOPES JR., 2021, p. 220).

E por fim, se fizermos parte ou todo o acima, há necessidade de profunda análise sobre como o faremos sem investimentos no já superlotado e indigno sistema carcerário nacional, considerando que a ampliação da esfera de negociação penal acarreta também na ampliação do número de encarcerados, com tendência ao superencarceramento. 


Notas de rodapé

1 Regra que determina o compartilhamento de provas absolutórias entre as partes. Vide Brady v. Maryland, 373 U.S. 83 (1963).

2“[A negociação penal] não é acessória ao sistema de justiça criminal; é o sistema de justiça criminal.” Tradução livre da autora.


Referências

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WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

Acordos de não persecução penal. “Investigações mais céleres, eficientes e desburocratizadas.” Disponível em: http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr2/publicacoes/apresentacoes/apresentacao-sobre-acordos-de-nao-persecucao-penal-anpp-e-30-012020_.pdf Acesso em: 30 abr. 2021.

Breves notas sobre o cabimento do acordo de não persecução penal após o recebimento da denúncia

Gabriel Marson Junqueira 

Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra. 

Promotor de Justiça no Estado de São Paulo. 

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/7072990083275548

ORCID: 0000-0001-6626-6758

g_junqueira@yahoo.com


Resumo: O presente trabalho procura contribuir para a identificação do correto momento a partir do qual realmente não se pode mais cogitar o acordo de não persecução penal. Após verificação (i) da nota característica dos institutos da justiça penal consensual, em geral, (ii) dos principais objetivos político-criminais da justiça penal consensual e (iii) da solução adotada por alguns ordenamentos jurídicos pertencentes ao sistema de civil law para o problema proposto, conclui-se que o acordo de não persecução penal deve ser admitido mesmo após o recebimento da denúncia, desde que ainda não iniciada a produção da prova oral.

Palavras-chave: Acordo de não persecução penal – Justiça penal consensual – Momento para realização do acordo – Tópicos político-criminais da justiça penal consensual.

Abstract: The present work seeks to contribute to the identification of the correct moment from which it is really no longer possible to consider a non-criminal prosecution agreement. After checking (i) the characteristic note of the consensual criminal justice institutes, in general, (ii) the main political-criminal objectives of the consensual criminal justice and (iii) the solution to the proposed problem, adopted by some legal systems belonging to the civil law system, it is concluded that the criminal non-prosecution agreement must be admitted even after the receipt of the indictment, as long as the production of the oral evidence has not yet started.

Keywords: Non-criminal prosecution agreement - Consensual criminal justice - Time to reach agreement - Political-criminal topics of consensual criminal justice.


Data: 29/06/2021
Autor: Gabriel Marson Junqueira

A Lei 13.964/19, também conhecida como Lei Anticrime, introduziu no CPP o art. 28-A. Por meio desse dispositivo, conferiu disciplina legal ao instituto do acordo de não persecução penal, antes previsto na Resolução 181/17, do CNMP, de constitucionalidade duvidosa.

O art. 28-A, sobretudo o “caput” e os § 8º e § 10º, deixam claro que, em princípio, o instituto foi pensado para ser aplicado ao final da fase investigatória, como alternativa ao oferecimento de denúncia. Nessa linha, já se o definiu como instrumento pelo qual o investigado pode, ao final da primeira fase da persecução penal, “reconhecer a responsabilidade pelo fato, abrindo mão de seu direito a um processo e ao consequente julgamento judicial de mérito para receber, desde logo, uma pena” (DOTTI; SCANDELARI, 2019, p. 05).

Não por outro motivo, recentemente, o STJ decidiu que, apesar da natureza híbrida do novo dispositivo e, pois, da possibilidade de aplicação retroativa – leia-se: a casos ocorridos antes da vigência da Lei 13.964/19 –, não se pode mais cogitar acordo de não persecução penal após o recebimento da denúncia.1

Neste breve artigo, a traço bem grosso, pretendemos verificar se acertou o STJ ao decidir dessa forma. Em outras palavras, procuraremos indicar qual é, a nosso ver, o momento a partir do qual realmente não se pode mais pensar em acordo de não persecução penal. Para tanto, primeiramente, situaremos o instituto em causa no âmbito da justiça penal consensual. Em seguida, identificada, inclusive, a nota característica dos institutos de justiça penal consensual, procuraremos apontar seus objetivos e os principais tópicos político-criminais que lhes subjazem. Finalmente, averiguaremos, ainda que superficialmente, qual foi a solução adotada para o problema aqui analisado em outros ordenamentos jurídicos. Percorrido tal caminho, tentaremos, enfim, responder à questão que nos move.

O acordo de não persecução penal representa mais um espaço cedido ao consenso no processo penal brasileiro, ao lado da composição civil de danos, da transação penal, da suspensão condicional do processo e da colaboração premiada. Integra, desse modo, a “justiça penal consensual”, expressão que abrange formas diversas de conclusão do caso penal, com amputação de atos processuais, diante da vontade das partes em assim procederem, mas sob controle jurisdicional (GUINALZ, 219, p. 124-125). Como se pode notar, a nosso ver, a essência da justiça penal consensual, ao menos nos sistemas de civil law, está na subversão do rito tradicional, com a supressão voluntária de fases processuais, principalmente daquelas ligadas à colheita de provas, antecipando-se a solução do caso penal.2

A ampliação dos espaços de consenso mundo afora parece dar razão a Schünemann, para quem a real “força motriz do desenvolvimento global do processo penal” está no desaparecimento da audiência de instrução e julgamento enquanto principal centro decisório (SCHÜNEMANN, 2103, p. 255).3 Para o autor alemão, a tendência por ele identificada de abolição da audiência de instrução e julgamento enquanto centro decisório do processo penal deve-se principalmente à sobrecarga do sistema de justiça criminal, decorrente, por um lado, do enorme crescimento da criminalidade nos últimos anos e, por outro, do surgimento dos chamados “processos-monstros” – “duradouros e complexos processos envolvendo direito penal econômico” (SCHÜNEMANN, 2013, p. 256).

Desse modo, parece necessário admitir que o “principal atrativo” do modelo do consenso seja mesmo aliviar a carga de trabalho do sistema de justiça criminal, viabilizando a construção de respostas penais aos crimes com considerável economia de tempo – fala-se, aqui, de celeridade – e de recursos (LEITE, 2013, p. 47). Mas existem outros tópicos político-criminais subjacentes ao crescimento dos espaços de consenso, a saber: a intervenção mínima, a preferência pela solução consensual pelo simples fato de ser consensual, e a não estigmatização do agente (CAEIRO, 2000, p. 40).

Com efeito, para Cláudia Maria Cruz Santos, apesar de a justiça consensual ser geralmente associada à celeridade, a solução consensual pode ser preferível justamente por sê-la, isto é, por não constituir algo imposto (SANTOS, 2020, p. 214-216). Ademais, com a solução consensual, poupa-se o imputado da “cerimônia degradante” da audiência de instrução e julgamento, amplificadora das sequelas de estigmatização. Ou seja, os espaços de consenso não deixam de constituir também um legado do “interacionismo simbólico” (labelling approach) (MENDES, 2018, p. 78).

Tendo tudo isso em mente, pode o acordo de não persecução penal ser celebrado no curso do processo? Em nosso sentir, a resposta deve ser positiva, desde que não iniciada efetivamente a audiência de instrução e julgamento – destinada sobretudo à colheita da prova oral e do interrogatório do acusado, ou apenas do interrogatório do acusado.  Primeiro, porque, após o início da instrução, já não se pode mais cogitar a subversão procedimental, sendo essa a tônica dos institutos de justiça penal consensual. Segundo, porque, iniciada a instrução, a solução consensual já não representará mais ganhos significativos em termos de celeridade. E, terceiro, porque, iniciada efetivamente a “cerimônia degradante” da audiência de instrução e julgamento, tem-se por prejudicado o objetivo de evitar a estigmatização do acusado. Inversamente, até esse marco temporal (início da instrução), ainda é possível cogitar a subversão procedimental, a aceleração processual e a não estigmatização do réu.

Cremos que foi basicamente por isso que a Ley de Enjuiciamento Criminal, na Espanha, e o Codice de Procedura Penale, na Itália, estabeleceram como marco a partir do qual não mais se admite a solução consensual (conformidad e patteggiamento) o início da audiência de instrução e julgamento.4 A propósito, o projeto brasileiro de novo CPP não deixou de enfrentar o tema. E o equacionou da mesma maneira, ou seja, estabelecendo que “até o início da instrução e da audiência a que se refere o art. 276, (...) o Ministério Público e o acusado, por seu defensor, poderão requerer aplicação imediata de pena (...)”.5

Pelo exposto, parece-nos que se equivocou o STJ ao estabelecer que não cabe acordo de não persecução penal após o recebimento da denúncia. Por um lado, afigura-se claro que o instituto foi pensado, inicialmente, como alternativa ao oferecimento de denúncia, desde que preenchidos os requisitos legais. Logo, em regra, deve ser aplicado ao final da fase investigatória. Por outro, não se extrai do art. 28-A qualquer vedação ao seu oferecimento após o recebimento da inicial acusatória, desde que – pelas razões expostas acima – ainda não iniciada a instrução oral do feito. A nosso ver, o posicionamento do STJ revela incompreensão da verdadeira natureza do acordo de não persecução penal, além de desconhecimento dos seus propósitos político-criminais. 


Notas de rodapé

1 HC 628.647.

2 Talvez seja possível dizer que, aqui, seguimos a doutrina especializada majoritária. A propósito, ver, por exemplo, Guinalz (2019, p. 124-125), Leite (2013, p. 23) e Santos (2020, p. 214-216). Diferentemente, no plea bargaining norte-americano, a tônica talvez deva ser colocada na – ampla – negociação da declaração de culpa do investigado (plea of guilty) em troca de um tratamento mais brando pelo promotor de Justiça. Em sentido próximo, ver Wishingrad (1974, p. 499).

3 No mesmo mesmo sentido, isto é, identificando a mesma tendência no processo penal de diversos países, tem-se Deu (2012, p. 128).

4 Nesse sentido, ver arts. 784.3 e 787.1, da LECrim, e art. 446.1, do CPP italiano.

5 Art. 283 do PL 8.045/2010.


Referências

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DOTTI, René Ariel; SCANDELARI, Gustavo Britta, Acordos de não persecução e de aplicação imediata de pena: o plea bargain brasileiro, Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 27, n. 317, p. 5-7, abr. 2019.

GUINALZ, Ricardo Donizete, Consenso no processo penal brasileiro. Liber Ars: São Paulo, 2019.

LEITE, Rosimeire Ventura, Justiça consensual e efetividade do processo penal. Del Rey: Belo Horizonte, 2013.

MENDES, Paulo de Sousa, Lições de direito processual penal. Editora Almedina: Coimbra, 2018.

SANTOS, Cláudia Cruz, O direito processual penal português em mudança: rupturas e continuidades. Editora Almedina: Coimbra, 2020.

SCHÜNEMANN, Bernd, Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Marcial Pons: São Paulo, 2013.

WISHINGRAD, Jay, The Plea Bargain in Historical Perspective, Buffalo Law Review, v. 23, n. 2, p. 499-527, jan. 1974.

O Ministério Público e a justiça negocial no Brasil: entre a obrigatoriedade e a discricionariedade

Ivan Candido da Silva de Franco 

Doutorando em Processo Penal na Faculdade de Direito da USP. 

Mestre em Direito e Desenvolvimento pela FGV-SP. 

Sócio do Mudrovitsch Advogados. 

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/3061165291732985

ORCID: 0000-0002-4645-9402

ivan.csfranco@gmail.com


Resumo: A consolidação da Justiça Negocial trouxe novos desafios para serem pensados em nosso sistema processual, notadamente quanto ao papel dos sujeitos processuais. O artigo busca entender as funções pertinentes ao Ministério Público, em particular no que toca à obrigação de propor a ação penal de iniciativa pública no cenário de expansão dos mecanismos consensuais. Mesmo num cenário em que a obrigatoriedade pura é questionada, não vemos espaço normativo para se sustentar a existência de uma discricionariedade do órgão acusatório. Defendemos a necessidade de uma interpretação estrita do papel do Ministério Público, em respeito à igualdade na persecução penal.

Palavras-chave: Ministério Público - Justiça Negocial – Obrigatoriedade - Discricionariedade.

Abstract: The strengthening of Consensual Justice in Brazil brought new challenges to the Criminal Justice System, notably in the role of its players. This article aims to understand the functions of the Public Prosecutor’s Office, particularly the obligation to mandatorily file a criminal claim, in a context of expansion of consensual mechanisms. Even when this obligation is widely challenged, there is no normative background supporting the discretion of the Public Prosecutor’s Office. We stand for the necessity of a strict interpretation of the Public Prosecutor’s Office role, which must respect the equality in criminal prosecution.

Keywords: Public Prosecutor’s Office - Consensual Justice – Mandatory - Discretion.

Data: 29/06/2021
Autor: Ivan Candido da Silva de Franco

Introdução: mecanismos negociais e o fim do modelo estritamente conflitivo no Brasil

O sistema processual penal brasileiro é alvo de discussões acerca de sua natureza, se acusatória ou inquisitiva (PRADO, 2005). Na impossibilidade de uma afirmação categórica acerca disso, há quem avalie o grau de acusatoriedade do ordenamento jurídico (ZILLI, 2021), até como forma de verificar o atendimento a critérios de respeito a valores democráticos. Independentemente de dissensos nas qualificações feitas sobre o caso brasileiro, os princípios e regras que estruturam a persecução penal guardam um traço em comum: relacionam-se a uma noção conflitiva do processo.

Se há pouco tempo os conflitos penais eram solucionados exclusivamente após uma acusação formal contra um sujeito, que poderia ter a sua culpa reconhecida pelo Estado depois de uma instrução processual, nos últimos anos foi aberto um novo flanco em nosso sistema processual: os institutos da Justiça Negocial.1 Com a “revolução negociada” (ZILLI, 2017) inaugurada pela Lei 9.099/95, mudou-se totalmente a feição do processo, pois saídas consensuais foram aqui incorporadas. A solução de um processo penal passou a também ser alcançada por meio de acerto entre as partes, havendo sanção do sujeito imputado mesmo sem estabelecimento de culpa pelo Estado, tendência que se ampliou nos anos seguintes.

As formas consensuais trazidas por diferentes diplomas legislativos trouxeram impactos cada vez mais significativos em nosso ordenamento jurídico, modificando determinadas atribuições de seus atores. Nesta oportunidade, dedicamo-nos à compreensão do papel dos sujeitos processuais em meio a esse contexto. Importa      entender como princípios e regras criados no contexto de um modelo estritamente conflitivo se harmonizam com os novos desafios (teóricos e práticos) surgidos com a realidade do consenso. À vista disso, faremos uma análise focada sobre o papel do Ministério Público (MP), em especial na avaliação do princípio da obrigatoriedade,2 entendido como a necessidade de exercer o direito de ação (oferecimento da denúncia), verificada a justa causa (BADARÓ, 2015, p. 182). O afastamento da obrigatoriedade pura pelas soluções negociais implicou o reconhecimento da discricionariedade para atuação funcional do órgão acusatório?

Nem ao céu, nem à terra: inaplicabilidade da obrigatoriedade pura ou da discricionariedade ao órgão acusatório

Conceitos e práticas de mecanismos consensuais se solidificaram no Brasil nos últimos anos. Introduzidos com delimitação rígida pela Lei 9.099/95 (transação penal e suspensão condicional do processo), eles passaram a admitir hipóteses mais alargadas quanto ao momento de realização e aos crimes abarcados, como na Lei 12.850/13 (acordos de colaboração premiada) e na Lei 13.964/19 (acordos de não persecução penal), afastando a ideia de que a solução pelo processo penal conflitivo é adotada de forma exclusiva.

Agora, após verificada a justa causa para a persecução penal e antes de se iniciar a instrução processual, os institutos consensuais podem ser mobilizados, dando solução precoce e imediata ao conflito penal. O MP, órgão acusatório e titular da ação penal de iniciativa pública por atribuição constitucional (CF, art. 129, I), tem visto ser ampliado o espectro de possibilidades de atuação funcional quando em contato com elementos suficientes para prosseguir com a persecução penal, vislumbrando os caminhos negocial ou conflitivo. Num cenário em que mais mecanismos são conferidos aos agentes de Estado para uma busca por maior eficiência e celeridade na resolução de fatos potencialmente delitivos, importa avaliar se isso foi acompanhado por uma maior liberdade de escolha3 conferida por lei ou, ao contrário, se foi mantida uma mais estrita vinculação a hipóteses delimitadas.

Certo de que as formas de agir na persecução penal foram aumentadas com a introdução dos novos institutos, o ponto nevrálgico está em apurar se a lei também conferiu uma margem significativa de escolha, isto é, a efetiva possibilidade de o membro do órgão acusatório optar de forma livre entre as saídas negocial ou conflitiva após verificada a justa causa. Parece-nos que a melhor forma de encontrar a resposta a essa questão é por meio do método indutivo: avaliar, pela interpretação das leis em vigor, se as mudanças normativas refletiram na ampliação de escolhas ao membro do MP.

Tal incursão se relaciona com os princípios e regras regentes da ação penal de iniciativa pública. É interessante observar que à nossa doutrina jurídica não escapou o enfraquecimento da obrigatoriedade da ação penal.4 Embora não tenha havido alteração dos dispositivos normativos mobilizados para sustentá-la (arts. 18, 24 e 395 do CPP), o seu alcance tem sido colocado em questão com frequência. Antes reconhecida de forma generalizada, a obrigatoriedade foi acumulando críticas de ordens pragmática e teórica. Sob o primeiro prisma,5 já se entendeu que a obrigatoriedade não se verificava na prática porque diversos crimes já não eram perseguidos. Sob o outro (GRINOVER, 1996), a existência de alternativas à persecução penal conflitiva eliminou o cabimento da obrigatoriedade em sua acepção mais pura e deu lugar a formulações teóricas alternativas, sendo a discricionariedade regrada a mais difundida. Um conceito gestado numa lógica estritamente conflitiva não mais explicava um sistema processual com as diferentes colorações trazidas pela lógica negocial.

Em nossa visão, esse conceito puro de obrigatoriedade não mais se sustenta. Mesmo sem alteração legislativa dos dispositivos que o amparam, as novas leis modificaram o seu sentido, sendo contrafactual afirmar que, verificados elementos suficientes de autoria e materialidade, o MP deverá oferecer a denúncia criminal. A existência da justa causa deve continuar sendo a baliza para avaliar se alguma sanção por meio da persecução penal deve ser buscada pelo órgão acusatório, ainda que não o faça (necessariamente) pelo processo penal conflitivo. E é justamente aqui que se encontra a principal mudança que sustentamos: verificados os pressupostos processuais, o MP segue obrigado a seguir na persecução penal, ainda que diferentes hipóteses tenham se somado à (antes única) via conflitiva. Mais do que isso, as hipóteses alternativas ao conflito (transação penal, suspensão condicional do processo e acordo de não persecução penal) devem ser enfrentadas antes da mobilização do aparato estatal para o prosseguimento da instrução processual regular.

Ante a ampliação das hipóteses de atuação funcional do MP, notamos visões que sustentam a existência de uma verdadeira discricionariedade de seu membro frente à persecução penal ou, ao menos, de diferentes colorações dessa mais ampla liberdade (ABRAÃO; LOURINHO, 2020). Trata-se de visão que amplia o poder de decisão dos membros da instituição, sustentando que, a despeito de as leis de regência imporem critérios (em regra) estritos para as diferentes etapas da persecução penal, cabe ao órgão acusatório a escolha, livre de amarras, acerca do caminho a ser adotado. Ocorre que, na verdade, as hipóteses consensuais são uma etapa necessária e prévia na persecução penal hoje existente, não havendo, em lei, um espaço de disposição da ação penal pelo MP. Em nome da unidade e coerência sistêmicas, tal leitura ampliativa da liberdade de escolha deve ser revista.

Os institutos que operam a partir do consenso são bastante delimitados e formatados, vez que são definidos momentos e critérios para seu oferecimento, bem como existe a possibilidade de controle judicial caso isso não seja feito pelo órgão acusatório. Pela dicção da Lei 9.099/95, não há espaço para juízos de estrita conveniência do MP, uma vez que, configuradas as condições estabelecidas em lei (art. 76, §2º), deve ser oferecido o acordo de transação penal. Da mesma forma, a suspensão condicional do processo estabelece condições específicas nas quais o benefício há de ser oferecido pelo titular da ação penal (art. 89, caput). A locução “poderá propor” há muito foi superada como uma justificativa de verdadeira opção do órgão acusatório, sendo exemplar o fato de os Tribunais Superiores já terem se debruçado sobre a matéria, com edição de súmula acerca da temática (Súmula 696/STF), restando poucas dúvidas sobre a sua aplicação.

No mais recente instituto consensual, criado pela Lei 13.964/19, a sistemática parece ser bastante semelhante. O acordo de não persecução penal há de ser proposto sempre que verificadas as condições dispostas em lei (e desde que não cabíveis as saídas previstas na Lei 9.099/95, como se lê do art. 28-A, caput e § 2º do CPP). É garantido o momento negocial antes de intentado o processo conflitivo, oportunidade em que uma sanção é aplicada sem estabelecimento de culpa pelo Estado. Da mesma forma, a discussão sobre a maior ou menor vinculação do órgão acusatório à sua discricionariedade ou aos termos da lei se coloca.

Resta claro, portanto, um padrão adotado pelo legislador pátrio: a disposição de saídas negociais que operam de maneira mandatória e devem ser mobilizadas antes da instrução processual própria do processo conflitivo. O momento consensual, por sua natureza e da forma como incorporado em nosso ordenamento jurídico (GRINOVER, 1996, p. 357), como regra, precede (de forma obrigatória) o momento conflitivo. As balizas legais são colocadas e devem ser obedecidas, havendo algum espaço para justificação (caso a caso) da não adoção do instituto consensual, como no caso deste não ser “necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime” (hipótese do art. 28-A, CPP). Tais requisitos que abrem alguma margem para subjetividade, todavia, devem ser enfrentados pelo membro do MP, com justificativa formal e escrita sobre eventual não adoção dos institutos, estando sujeitas a controle. Não há que se falar, portanto, em um agir por mera conveniência do membro do órgão acusatório, que é o exato sentido que se extrai da (equivocada) noção de discricionariedade.

Embora destoe dos demais institutos, o caso da colaboração premiada da Lei de Organizações Criminosas é particular sob diversos aspectos. Em primeiro lugar, é ao mesmo tempo um negócio jurídico-processual e um meio de obtenção de prova (BADARÓ, 2018). Ademais disso, as peculiaridades de sua utilização a colocam muito mais como uma estratégia de defesa do sujeito imputado do que como um instituto a ser necessariamente observado pelo MP. De toda forma, a colaboração premiada foi largamente utilizada e, ante os desafios e críticas gerados de sua prática e de sua mobilização alargada (CAVALI, 2018), o legislador procedeu a modificações em sua feição por meio da referida Lei 13.964/19. Tais alterações enrijeceram, em grande medida o seu uso, restringindo a hipótese de não oferecimento de denúncia a casos específicos em que sejam informadas infrações que não eram de seu conhecimento (§4º e §4º-A do art. 4º), além de ter sido ampliado o controle judicial (incisos II a IV do § 7º do art. 4º).

Mesmo no instituto tido como mais discricionário, o legislador realizou mudanças no sentido de restringir o seu uso. Essa é uma sinalização importante, mas o central é verificar que as características imanentes ao instituto (meio de obtenção de prova e restrito a crimes específicos) o colocam como uma exceção à lógica negocial incorporada em nosso país e, ainda assim, não confere plena liberdade ao órgão acusatório. A ampla liberdade acerca da acusação, mediante o uso de critérios de conveniência acusatória que permitam definir a política criminal, não foi delegada por lei ao MP.

Conclusão: unificação da compreensão entre os mundos negocial e conflitivo

A hoje consolidada realidade negocial trouxe significativas mudanças ao nosso sistema processual penal. Todos os sujeitos processuais tiveram alguma forma de modificação em suas funções. As novidades foram realizadas por meio de leis formais, com as etapas consensuais sendo postas (em regra) como prévias à solução conflitiva. Nossas leis não abrem espaço para interpretações extensivas que confiram um poder decisório nunca mencionado em qualquer dispositivo normativo. Em face disso, a suposta existência de um poder de atuação eivado na liberalidade e na escolha de atuação por motivos de conveniência do MP se afasta da interpretação da lei posta. Não há, nem nunca houve, autorização para a utilização de critérios de mera conveniência acusatória para o fim de estabelecimento de política criminal, que deve depender dos critérios legais.

A conciliação teórica e prática dos mundos das soluções conflitiva e negocial exige (re)ordenações conceituais, mas isso não significa aceitar mudança tão profunda e desprovida de amparo normativo. O fato de a obrigatoriedade pura não mais se sustentar não implica a afirmação de seu reverso, que seria a discricionariedade da ação penal de iniciativa pública. A existência de mais mecanismos de consenso não significa que o plea bargaining e a sua inerente ampla margem de negociação e disposição em matéria criminal tenha chegado ao Brasil. É momento de refletirmos com cuidado sobre essa nova realidade, com proposições teóricas sólidas que não abandonem os pontos positivos da estrutura de nosso sistema processual, que busca preservar a igualdade na aplicação da lei, e não a sujeição a critérios estritos de conveniência e justiça de cada membro do MP.


Notas de rodapé

1 Para os fins deste artigo, utilizamos as expressões “negocial” e “consensual” como sinônimas, em oposição a uma lógica de conflito. Vinicius Gomes Vasconcellos se utiliza do termo barganha (VASCONCELLOS, 2015, p. 68). As críticas feitas pelo autor a tais mecanismos na seara penal, embora relevantes, fogem ao escopo do presente texto.

Embora haja discussão, manteremos a expressão princípio (JARDIM, 2007, p. 101-107). Ainda, são diversas as regras decorrentes da obrigatoriedade, notadamente a explicitamente prevista indisponibilidade da ação penal (CPP, art. 42), daí sua relevância (JARDIM, 2007, p. 118). Outras regras são mencionadas, como oficialidade, autoritariedade e oficiosidade (OLIVEIRA, 2019, p. 180-181).

Por escapar ao escopo do presente artigo, não entramos na discussão sobre independência funcional e interpretação jurídica livre sobre os mesmos fatos. Para tais discussões e delimitações conceituais, ver Mazzilli (2013).

4 É reconhecida de forma bastante difundida essa mitigação – por todos, ver Oliveira (2019, p. 1016). Nas “exceções” à obrigatoriedade são utilizadas diversas expressões, sendo as mais recorrentes obrigatoriedade mitigada ou discricionariedade regrada – como exemplos, Lima (2017, p. 1459), Távora e Alencar (2017, p. 80).

5 Na Justificação ao Projeto de Lei 1480/1989, que resultou na Lei 9.099/1995, foram aventados argumentos nesse sentido. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1995/lei-9099-26-setembro-1995-348608-exposicaodemotivos-149770-pl.html. Acesso em: 22 abr. 21.

Referências

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Acordo de não persecução penal como instrumento de promoção de programas de compliance?

Anna Carolina Canestraro 

Doutoranda em Direito Processual Penal pela USP. Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra, com período de investigação financiado pelo programa “ERASMUS+” na Georg-August-Universität Göttingen. Advogada. 

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/1604392529884511

ORCID: 0000-0002-3534-4589 

carolina.canestraro@gmail.com 


Túlio Felippe Xavier Januário 

Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra, com período de investigação financiado pelo programa “ERASMUS+” na Georg-August-Universität Göttingen. Bolsista da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/1894712298793127

ORCID: 0000-0003-0400-1273

tuliofxj@gmail.com


Resumo: Pretende-se, com o presente trabalho, levantar o questionamento sobre se o acordo de não persecução penal, recentemente incluído no Art. 28-A do CPP pela “Lei Anticrime”, seria uma possível nova “porta de entrada” para os programas de compliance no ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto e a partir de uma metodologia dedutiva, analisaremos inicialmente quais são os instrumentos dotados pelo poder público para a promoção destes programas, seguindo-se de um estudo sobre o próprio instituto do ANPP, seus requisitos e condições. Ao fim do trabalho, buscaremos demonstrar que, em algumas hipóteses, os programas de compliance poderiam ser propostos como uma das “condições inominadas” previstas pelo Art. 28-A, V, viabilidade esta, porém, que não viria desacompanhada de alguns desafios ainda a serem enfrentados pelos operadores do direito, sobre os quais teceremos alguns comentários.

Palavras-chave: Direito Penal Negocial – Compliance - Acordo de Não Persecução Penal.

Abstract: The aim of the present essay is to raise the question of whether the non-prosecution agreement, recently included in Article 28-A of the Brazilian Criminal Procedure Code by the “Anticrime Law” (Law 13.964/19), would be a possible new “Gateway” to compliance programs in the Brazilian legal system. To do so and based on a deductive methodology, we will initially analyze what are the instruments endowed by the State for the promotion of these programs, followed by a study on the institute of the non-prosecution agreement itself, its requirements and conditions. At the end of the paper, we will demonstrate that, in some cases, compliance programs could be proposed as one of the “innominate conditions” provided by the Art. 28-A, V, but this feasibility would not come without some challenges yet to be faced by jurists, about which we will make some comments.

Keywords: Negotiated Criminal Law – Compliance - Non-Prosecution Agreement.

Data: 29/06/2021
Autor: Anna Carolina Canestraro e Túlio Felippe Xavier Januário

Os programas de compliance ocupam atualmente um indiscutível papel de destaque não apenas no cotidiano de grandes sociedades empresárias, mas também nas recentes discussões doutrinárias jurídico-criminais. E um dos aspectos bastante debatidos nesta seara diz respeito às formas de incentivo à adoção destes programas, isto é, uma vez se tratando de instrumentos cuja implementação representa um elevado custo financeiro para a empresa, há que se entender quais seriam as vantagens esperadas desta decisão.

Ao analisar os patamares de influência do poder público sobre os entes privados na promoção de programas de compliance, Marc Engelhart (2018, 21 e ss.; 2014, p. 69 e ss.) identifica seis níveis progressivos, que vão desde a I) autorregulação pura até uma VI) obrigação geral de implementação dos programas. No primeiro caso, não haveria um incentivo estatal propriamente dito, sendo que eventual adoção de programas de compliance por parte das pessoas jurídicas seria motivada por ideais éticos e reputacionais ou até mesmo, em sentido contrário, na tentativa de delegar responsabilidades (inclusive criminais) da alta direção para ocupantes de cargos hierarquicamente mais baixos na estrutura empresarial. Uma vez ausente o Estado, não podemos nos esquecer também de eventuais incentivos particulares, tais como aqueles observados no âmbito do mercado de valores (como requisito para abertura de capital em determinada bolsa), nas cadeias de fornecimento (como requisito para a celebração de contratos) ou também por entidades setoriais, tais como associações.

No extremo oposto, uma obrigação geral seria observada na hipotética situação de exigibilidade de programas de compliance para todas as pessoas jurídicas, o que, apesar de se mostrar como a forma indiscutivelmente mais severa de incentivo, ainda não existe na generalidade dos ordenamentos jurídicos. Este “nível VI” é observado tão somente de maneira setorial, com obrigações voltadas para setores extremamente sensíveis, tais como aqueles com alto risco de lavagem de dinheiro (ENGELHART, 2018, p. 29-30)1 ou para empresas que pretendam contratar com a administração pública direta ou indireta, quando assim determinado por lei (CANESTRARO; JANUÁRIO, 2020, p. 225 e ss.).

Contudo, para além destas possibilidades mais radicais, o autor destaca hipóteses nas quais, sem impor um verdadeiro dever de compliance, o Estado encontra formas não apenas de incentivar a adoção destes programas, como ainda de tentar influenciar em seus elementos intrínsecos, tais como escopo e mecanismos dos quais são dotados. Dentre eles, podemos destacar os II) incentivos estatais informais, III) a recompensa do compliance, IV) o sancionamento por falhas ou falta de compliance e a V) exclusão da responsabilidade corporativa quando medidas eficientes de compliance forem tomadas (ENGELHART, 2018, p. 24-29).2 

A despeito da relevância dos demais níveis de incentivo, cumpre-nos destacar para os fins do presente trabalho, o supramencionado “nível 3”, referente aos mecanismos de recompensa dos programas de compliance. De grande relevo em ordenamentos jurídicos nos quais há a possibilidade de responsabilização penal das pessoas jurídicas, este nível abrange hipóteses nas quais não apenas há uma consideração da maior ou menor efetividade das medidas de compliance para fins de dosimetria da pena, mas também quando a adoção prévia destes programas possa fundamentar até mesmo o arquivamento do feito contra a pessoa jurídica em questão, ou a celebração de acordos com a abreviação do procedimento sancionatório (ENGELHART, 2018, p. 26-27).3

Destaca-se também, ainda no plano das “soluções de diversão” quando aplicadas aos entes coletivos, uma recente evolução no sentido de considerar a implementação de medidas de prevenção e controle não apenas como requisitos prévios a serem levados em conta na celebração do negócio, mas também como medidas posteriores e reativas a um eventual ilícito criminal, a serem consideradas como condição para o cumprimento do acordo (SOUSA, 2019, p. 15-16).4

Para o bem ou para o mal, é fato que o ordenamento jurídico brasileiro, através da denominada “Lei Anticrime” – Lei 13.964/19 –, acrescentou expressamente o Art. 28-A no CPP, prevendo o chamado “acordo de não persecução penal”, instrumento de inegável cariz de justiça negocial, que já era disciplinado pela Res. 181/2017 do CNMP e que sofrera algumas alterações pela Res. 183/2018. Segundo o caput do dispositivo, não sendo caso de arquivamento e havendo confissão formal e circunstanciada por parte do investigado por infração penal cometida sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, poder-lhe-á ser oferecido o acordo pelo MP, desde que ele se mostre necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime. Para além destes requisitos objetivos positivos, exige-se, dentre alguns outros requisitos negativos, que não seja caso de transação penal, nos termos do §2º.5

No que toca aos objetivos do presente trabalho, cumpre-nos destacar as condições a serem cumpridas pelo Acusado para que seja considerado cumprido o acordo e seja extinta a punibilidade do agente. Nesse sentido, nos incisos I a V do Art. 28-A, são previstas quatro condições obrigatórias6-7 e uma “cláusula aberta de negociação”, referente ao cumprimento, por prazo determinado, de outra condição a ser imposta pelo MP, desde que proporcional e compatível com a infração penal do caso (MARTINELLI; SILVA, 2020, p. 69).

A questão a ser colocada é: poderá o Ministério Público determinar a uma pessoa jurídica, como condição inominada, a implementação de um programa de compliance (ou a revisão do já existente, se for o caso)?

Inicialmente, cumpre-nos destacar que, ao contrário de alguns outros ordenamentos jurídicos, tais como o norte-americano, a limitação da responsabilidade penal da pessoa jurídica no Brasil aos crimes ambientais limita um pouco a relevância deste questionamento. Mas certamente não a esvazia. De uma breve análise da Lei 9.605/98, observamos que todos os crimes nela previstos se encontram no limiar de pena mínima cominada cujo ANPP é admitido, sendo que boa parte deles, por ter pena máxima cominada acima dos 02 (dois) anos, não admite transação penal. Ademais, é evidente que, para além do preenchimento dos demais requisitos exigidos pelo tipo, a ser analisado caso a caso, os crimes ambientais dificilmente serão cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa.

Desta feita, há nos delitos contra o meio ambiente um inegável campo de aplicação dos acordos de não persecução penal, podendo eles serem propostos quando preenchidos os requisitos legais, inclusive quando for a Acusada uma pessoa jurídica, haja vista não haver qualquer restrição legal quanto a estes entes.8

Esta viabilidade, porém, certamente não significa que o instituto poderá ser aplicado inadvertidamente e tampouco que inexistam pontos sobre os quais há que se refletir com bastante cautela. Primeiramente, deve se questionar se, em se tratando o Réu de um grande agente econômico – tal como boa parte das pessoas jurídicas –, e a depender da gravidade dos danos causados pelo ilícito, o oferecimento do acordo seria necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime, tal como exigido pelo Art. 28-A do CPP. Ainda que a literalidade do artigo diga pouco – ou quase nada – sobre o que deve se entender por este requisito, parcela da doutrina o interpreta como uma espécie de concretização da orientação político-criminal do instituto,9 o qual somente poderá ser invocado caso se entenda que ele “contribuirá para a realização da função preventiva do direito penal”. Para tanto, examinar-se-ia se na infração penal haveria um injusto mais grave – grau de violação do bem jurídico, circunstâncias da ação e consequências do fato – ou maior culpabilidade do agente – reprovabilidade pessoal do autor –, que impediriam o oferecimento do ANPP (CABRAL, 2020, p. 367-373).

Ora, em vista do grande poderio econômico ostentado por algumas pessoas jurídicas e também da extensão dos danos causados pela conduta, pode ser que, no caso concreto, se verifiquem hipóteses nas quais as condições a serem impostas no acordo poderiam ser consideradas insuficientes para suscitar os efeitos preventivos e de reprovação dele esperados, alcançando a ideia de que, considerando o custo-benefício, a prática delituosa teria “compensado” para a empresa.10 E é justamente por esta razão que se questiona: poderiam os programas de compliance se tornar uma condição imposta no âmbito do ANPP para que se alcance a reprovação e prevenção de eventuais novos delitos?

Não podemos nos esquecer de que a implementação de um programa de compliance representa altos custos financeiros para a pessoa jurídica que decida fazê-lo, sendo certo que não serão todas as sociedades empresárias que terão efetivas condições (ou até mesmo interesse) de implantá-lo ou ao menos de fazê-lo a níveis razoáveis de eficiência. Ora, uma vez não havendo uma ampla liberdade na estipulação da condição inominada prevista pelo Art. 28-A do CPP, a exigência de implementação ou reforma de um programa de compliance já existente, voltado à prevenção de crimes ambientais, tais como ocorrido no caso, poderia ser considerada uma condição proporcional para com os crimes e penas previstas pela Lei 9.605/98? Ou esta medida acabaria por beneficiar tão somente as grandes corporações que tenham efetivas condições de implantá-la, deixando desatendidas pequenas pessoas jurídicas? E ainda que não seja este o caso, seria financeiramente interessante para a pessoa jurídica celebrar o ANPP com tal condição bastante dispendiosa, em desfavor da continuidade do processo, com possibilidade de absolvição –  ou em caso de condenação, com penas que nem sempre serão de grande monta?

Parece-nos sim haver viabilidade fática e jurídica na utilização dos acordos de não persecução penal como uma forma de “incentivo estatal” aos programas de compliance, a ser exercido, neste caso, pelo Ministério Público. Esta já é, inclusive, uma tendência observada em diversos ordenamentos que preveem instrumentos jurídicos análogos.11 Ademais, a promoção de um programa de compliance, desde que desenvolvido com seriedade, baseado em evidências científicas e que atenda não apenas a funções mercadológicas, mas que vise também uma efetiva mudança comportamental no cerne empresarial,12 tem, ao nosso ver, um maior potencial para alcançar as almejadas finalidades de reparação de danos (com a necessária atenção às vítimas de graves delitos ambientais, muitas vezes obliteradas nesta seara) e prevenção da reincidência do que a mera imposição das sanções penais previstas pela Lei 9.605/98.

É evidente que, para tanto, diversas questões devem ser previamente enfrentadas, sendo que algumas delas já foram apontadas neste texto. Contudo, o cenário nos parece ao menos propício para que discussões doutrinárias neste sentido sejam inauguradas, viabilizando-se que haja fundamentos teóricos e empíricos que auxiliem na melhor delimitação dos contornos da relação entre compliance e acordos de não persecução penal no Brasil, impedindo-se que, na sequência das tendências internacionais e tal como ocorrera com diversos outros institutos “importados” pelo nosso ordenamento jurídico, eles comecem a ser aplicados na prática, sem maiores e prévias reflexões científicas.


Notas de rodapé

1 O autor cita como exemplo a legislação portuguesa de “branqueamento de capitais”, que através da Lei 83/2017 impôs rigorosos deveres de compliance para entes atuantes em determinados setores (ENGELHART, 2018, p. 30). Para maiores detalhes sobre estes deveres em Portugal, conferir em: Rodrigues (2019, p. 128 e ss.).

2 Para uma análise pormenorizada destes níveis de influência, conferir também em: Canestraro e Januário (2020, p. 218-225).

3 Conforme aponta Susana Aires de Sousa (2019, p. 10-11), muito embora a colaboração da empresa possa assumir, em termos jurídico-criminais, diversas facetas, observa-se uma tendência recente à sua consideração para fins de celebração de acordos prévios à própria denúncia penal da sociedade empresária, em um negócio com traços marcantes do princípio da oportunidade.

4 Conforme destaca Maria João Antunes (2018, p. 121), do ponto de vista de seus negócios, há um inegável interesse por parte do ente coletivo no seu não envolvimento em um processo penal, o qual poderá ensejar em grandes prejuízos.

5 O §2º prevê um amplo rol de requisitos negativos que impediriam a celebração do acordo, os quais não serão explorados em pormenor por não afetarem diretamente ao objeto central do presente trabalho. Para maiores detalhes, conferir em: Bem (2020, passim).

6 “Art. 28-A [...] I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito;...” (BRASIL, 2019).

7 Neste sentido: “Pela redação legal, deve-se considerar como obrigatórias, aplicadas “cumulativamente”, as quatro primeiras condições, salvo a impossibilidade de adimplemento como, por exemplo, a falta de recursos do investigado para reparar o dano ou para pagar a prestação pecuniária, ou a inexistência de instrumentos, produto ou proveito do crime. “Alternativamente”, poderá ser também estabelecida a quinta condição, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada” (MOREIRA, 2020, p. 213).

8 Em sentido próximo: Rocha, 2021, p. 61.

9 Para uma análise detalhada da orientação político-criminal do processo penal e de seus institutos, conferir com detalhes em: Fernandes (2001, passim).

10 É claro que, por esta lógica, haveria espaço para questionarmo-nos também se as penas previstas pela Lei 9.605/98 teriam a aptidão para alcançar estes fins, discussão essa que, a despeito de sua relevância, extrapolaria os objetivos deste trabalho.

11 Para além do já mencionado sistema norte-americano, vide, por exemplo, a LOI 2016-1691 Sapin-II na França e a Lei Argentina 27.401.

12 Conforme bem destaca Eduardo Saad-Diniz (2019, p. 165), “cada um dos elementos só tem sentido para a tecnologia de compliance se decorrentes de avaliação científica sobre sua real necessidade e adequação às preferências da organização empresarial, se a confrontação com as evidências científicas na área informa que se trata de investimento que exercerá real influência no comportamento ético”. Sobre o chamado evidence-based compliance e criticamente à sua ausência no atual contexto de enforced self-regulation norte americano: Laufer (2018, p. 401 e ss.).   


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Sobre a discricionariedade do Ministério Público no ANPP e o seu controle jurisdicional: uma proposta pela legalidade

Guilherme Brenner Lucchesi 

Doutor em Direito pela UFPR. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Presidente do IBDPE. Coordenador regional adjunto do IBCCRIM no Paraná. Advogado.

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/1512135510310992

ORCID: 0000-0001-9505-421X

guilherme@lucchesi.adv.br


Marlus H. Arns de Oliveira 

Doutor em Direito pela PUC/PR. Vice-presidente do IBDPE. Membro do IBCCRIM. Advogado.

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/5739028993126392

ORCID: 0000-0003-0317-8093

marlus.arns@arnsdeoliveira.adv.br


Resumo: O presente artigo tem por objetivo apresentar críticas ao modelo negocial estabelecido pelo acordo de não persecução penal, da forma como instituído pela Lei 13.964/2019. Critica-se, primeiramente, a exigência de confissão para a celebração de acordo, sob risco de transformar-se em contrato de adesão em vez de propriamente uma negociação. Do mesmo modo, a exigência de determinadas condições e a maneira como a imputação é veiculada tem o potencial de conferir poder discricionário excessivo ao órgão da acusação, que tende a se comportar mais como autoridade e menos como parte no acordo. Tratando-se a propositura de acordo de atuação vinculada do Ministério Público nos casos em que estiverem presentes os requisitos legais autorizadores, defende-se a possibilidade de atuação jurisdicional para assegurar uma efetiva negociação entre acusação e defesa.

Palavras-chave: Acordo de Não Persecução Penal – Discricionariedade - Legalidade.

Abstract: This article aims to present a critique on the negotial model instated by the non-prosecution agreement, as established by Law No. 13964/2019. First, the requirement of a confession to strike a deal is criticized, due to the risk of converting the agreement in an adhesion contract. Likewise, the requirement of certain conditions and the manner in which the accusation is conveyed has the potential to confer excessive discretionary power on the prosecution, which tends to behave more as an authority and less as a party to the agreement. Considering the proposition of a non-prosecution agreement as a duty of the Public Prosecutor's Office in cases where the authorizing legal requirements are present, the possibility of judicial action is defended to ensure an effective negotiation between the prosecution and the defense.

Keywords: Non-Prosecution Agreement – Discretion - Legality.

Data: 29/06/2021
Autor: Guilherme Brenner Lucchesi e Marlus H. Arns de Oliveira

A denominada justiça penal negocial ganhou novos ares com a promulgação da Lei 13.964/2019, que deu contornos singulares ao instituto da colaboração premiada e apresentou o acordo de não persecução penal, entre outras importantes alterações.

É preciso lembrar que a possibilidade de acordo não é recente na legislação brasileira. A Lei 9.099/95 já previa a transação penal para as infrações de menor potencial ofensivo e a suspensão condicional do processo para crimes com pena mínima não superior a um ano.

O acordo de não persecução penal (ANPP) é verdadeira ampliação das oportunidades de o investigado evitar a instauração de um processo criminal, expandindo largamente as possibilidades anteriormente existentes de realização de acordo. Trata-se de um instrumento que possibilita ao Ministério Público deixar de oferecer denúncia, mesmo presentes os requisitos para tanto, nos casos em que as partes cheguem a um ajuste quanto à não continuidade da persecução penal, devendo o investigado cumprir condições mais brandas do que as penas supostamente cominadas em eventual sentença condenatória, definidas a partir de rol não taxativo previsto em lei.

É comum se fazer um certo paralelo entre o ANPP e a suspensão condicional do processo (art. 89, Lei 9.099/95). Apesar de ambos serem concebidos como modelos alternativos ao processo penal “tradicional”, o ANPP não pode ser identificado como uma espécie de “suspensão condicional do processo qualificada”, na medida em que comporta um componente negocial adicional. Deste modo, ao mesmo tempo que integra o rol de medidas despenalizadoras, difundidas no processo penal brasileiro a partir da Lei 9.099/1995, também constitui um mecanismo de justiça penal negocial, por sua inequívoca natureza de acordo.

Não se reconhece uma natureza essencialmente negocial no sursis processual, pois a lei estabelece como pressuposto o cumprimento de condições obrigatórias pelo acusado, durante um período de prova pré-estabelecido. Não há propriamente um acordo e sim termo de adesão a que adere acusado, tendo, no máximo, condições de suplicar pela redução da exigência de alguma das condições obrigatórias. Por parte do Ministério Público, além de não existir discricionariedade quanto ao oferecimento da proposta de suspensão condicional do processo,1 existe uma margem de negociação bastante restrita, colocando-se o agente ministerial como autoridade — e não como parte — concedendo um benefício ao acusado.

Além disso, a maior abertura conferida legalmente ao ANPP, somada ao fato de contemplar crimes de maior gravidade (com pena mínima inferior a quatro anos) em comparação aos contemplados pelo sursis processual (com pena mínima de até um ano), permite às partes acordarem condições que superem aquelas estipuladas na suspensão condicional do processo.

A única vedação expressa que se impõe ao ANPP é a impossibilidade de sua celebração nos casos que admitem transação penal (art. 76, Lei 9.099). O ANPP está inserido em outro contexto, muito diverso daquele em que foram instituídos os acordos dos Juizados Especiais Criminais, duas décadas atrás. O ANPP caminha rumo às práticas negociais no processo penal, em direção oposta ao estabelecimento de condições obrigatórias, exigidas na Lei 9.099.

Estando presentes os requisitos para a celebração de ANPP e estando o investigado disposto a confessar a prática da infração penal — o que nem sempre será o caso —, é perfeitamente possível que as partes ajustem os termos em que o acordo será celebrado. Isso vale até mesmo para os casos em que couber suspensão condicional do processo (pena inferior a um ano). O acusado só fica restrito aos estreitos limites da suspensão condicional nas hipóteses em que não houver avanço nas negociações do acordo.

Como se vê, em que pese os institutos apresentarem aspectos similares, ambos são essencialmente distintos. Por isso, é também inadequado invocar para o ANPP toda a jurisprudência firmada em relação à suspensão condicional do processo.

Conforme previsão expressa do art. 28-A do CPP, em não sendo caso de arquivamento da investigação, se houver confissão circunstanciada quanto à prática da infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal. O mesmo artigo ressalta que o acordo será proposto, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do delito.

Nesse ponto, reside a primeira crítica ao acordo de não persecução penal, visto não ser lógico — sob a ótica da ampla defesa, do contraditório e da presunção de inocência — que o investigado confesse crime como condição para o ANPP. A razão é simples: se não for realizado o acordo ou se o pacto não for cumprido por qualquer uma das partes, a confissão trará danos irreparáveis ao investigado, sendo tal fato, inclusive, objeto da ADI 6304.

O segundo ponto que merece discussão refere-se às condições estabelecidas para a celebração do ANPP. Há previsão no inciso V possibilitando que o investigado cumpra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração imputada”. Apesar de haver outras quatro possíveis condições previstas no art. 28-A, o caput do artigo dispõe que o investigado deve cumprir as condições estipuladas “cumulativa ou alternativamente”. Desse modo, sendo possível o cumprimento isolado de uma ou mais condições genéricas estipuladas pelo Ministério Público, não há como se defender que o rol seja numerus clausus.

O texto da norma é expresso ao enunciar que as condições a serem estabelecidas no acordo devem ser ajustadas pelas partes, ou seja, devem ser objeto de uma negociação horizontal entre partes — no mínimo, menos verticalizada do que uma relação autoridade-réu. Devem, portanto, resultar de efetivo consenso. A proposta da acusação não pode ser simplesmente oferecida ao investigado como quem diz: “é pegar ou largar”.

Por seu turno, ainda que não seja possível falar propriamente em um direito público subjetivo do imputado a uma proposta de ANPP, não há como se reconhecer uma discricionariedade ampla ao Ministério Público na propositura do acordo. Embora muitos afirmem que o ANPP representa uma mitigação da obrigatoriedade da ação penal,2 o instituto não funda um sistema de livre oportunidade e conveniência. O membro ministerial, por ser agente estatal, atua de forma vinculada às disposições legais, sendo regido pela garantia de legalidade (art. 37, CF).3

Assim, do mesmo modo que, estando presentes os pressupostos e condições para o exercício da ação penal, o MP não pode promover o arquivamento, também não pode deixar de propor acordo de não persecução penal quando presentes todos os requisitos para a sua propositura.4 Não há qualquer discricionariedade ampla na atuação do Ministério Público, tratando-se a oferta de proposta de ANPP de um poder-dever, proporcional e compatível com a infração imputada.

Não se desconhece a ampla margem de negociação concedida pela Lei ao Ministério Público ao admitir expressamente a estipulação de obrigações não previstas no art. 28-A, como já observado. Contudo, o ANPP é justamente uma negociação entre as partes, devendo as condições serem ajustadas e não impostas.

Na prática, porém, tem sido comum — em boa parte dos acordos — que as condições sejam unilateralmente impostas pelo Ministério Público, sem o mínimo interesse de negociação, restando ao investigado a alternativa de aderir ao acordo ou enfrentar o processo.

Necessário se faz ressaltar que, por vezes, a proposta apresentada não difere significativamente da provável pena ao final do processo. Tal fato desencoraja sobremaneira a evolução da justiça negocial na esfera penal, pois o acordo precisa verdadeiramente ser negociado pelas partes e resultar vantajoso em relação à possível pena.

Outro aspecto interessante é o não cabimento de ANPP nos casos em que o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional.

A princípio, essa disposição poderá limitar consideravelmente as hipóteses de oferecimento do acordo, vez que em muitas denúncias o Ministério Público descreve condutas praticadas de forma habitual e reiterada pela imputação do delito de organização criminosa, com descrição genérica e sem individualização das condutas de cada um dos acusados. Portanto, a prática de inclusão do delito de organização criminosa, com menção à habitualidade de suas práticas delitivas, tem o potencial de subtrair dos investigados a possibilidade de acordo.

Estipuladas as condições do acordo, a lei estabelece a necessidade de homologação judicial do ANPP. Cabe ao magistrado não apenas verificar a voluntariedade do acordo, como também as condições ajustadas na proposta e sua adequação. Estas não podem ser insuficientes, tampouco abusivas. Isso não significa que a jurisdição pode imiscuir-se nos termos do acordo, porquanto cuida-se de um negócio jurídico processual firmado entre as partes. Contudo, à vista da necessidade de homologação judicial, o magistrado deve analisar os termos tratados, a fim de examinar se houve o cumprimento do requisito da legalidade.

E se o juízo controla a legalidade na fase de celebração do ANPP, também deve controlar a legalidade na fase anterior, de formação da proposta. Assim, tratando-se a proposta do ANPP de poder-dever do Ministério Público, desde que preenchidos os requisitos legais para tanto, o motivo para eventual não oferecimento de acordo deve ser apresentado ao imputado e ao juízo. Nessa hipótese, o §14 do art. 28-A faculta ao imputado a possibilidade de remessa dos autos à instância revisional do Ministério Público, na forma do art. 28 do CPP.

Em relação ao procedimento de revisão ante a recusa por parte do Ministério Público em propor o ANPP, há um problema de sucessão de leis no tempo. O dispositivo que instituiu o ANPP dispõe que “no caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 deste Código”. No regime originário do CPP, ao aplicar o art. 28, os autos eram remetidos pelo juízo ao Procurador-Geral ou, no caso de crime de competência da Justiça Federal, às Câmaras de Coordenação e Revisão. O novo art. 28 do CPP, com redação dada pela Lei 13.964/2019, afasta a intervenção judicial nesse ponto, de modo que a submissão à instância de revisão ministerial fica condicionada ao pedido do interessado. Ocorre que, por ter sido suspensa a eficácia do art. 28 por decisão em Medida Cautelar na ADI 6.298 pelo STF, resta a dúvida se a remissão contida no § 14 do art. 28-A remete ao texto com eficácia suspensa ou à redação anterior (atualmente vigente) do art. 28 do CPP.

A questão apresenta efeitos práticos significativos, posto que a antiga e nova redação do art. 28 estabelecem dois modelos muito distintos de atuação: uma, voluntária, promovida pela parte interessada na revisão da atuação do agente ministerial; outra, de ofício, realizada pelo juízo no controle da legalidade dos atos realizados pelo membro do Ministério Público.

A despeito do novo sistema instituído no art. 28 pela Lei 13.964/2019 (com a eficácia suspensa), entende-se que o controle de legalidade da atuação ministerial permanece sendo um dever do juízo, cujo cumprimento não depende de provocação por parte do interessado. Nos termos do inciso I do art. 35 da LOMAN, é dever dos magistrados “cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício”.

Não há qualquer violação do princípio dispositivo — preceito reitor de um sistema processual acusatório — na atuação de ofício pelo magistrado a fim de assegurar o cumprimento da lei no processo. No caso do ANPP, este dever se traduz no exame quanto ao cumprimento por parte do Ministério Público do poder-dever que lhe é atribuído de iniciar as tratativas do acordo, quando presentes os requisitos legais.

Em termos procedimentais, uma vez verificado o cabimento de ANPP e não oferecida proposta pelo Ministério Público, caberá ao juízo intimar a acusação para que proponha o acordo ou decline os motivos pelos quais entende incabível a sua oferta. Outrossim, em homenagem à garantia do contraditório, deve-se buscar ouvir também o imputado. Caso o Ministério Público, intimado, deixe de apresentar justificativa ou a apresente de modo deficiente, ao juízo incumbe submeter a matéria à revisão da instância competente do órgão ministerial, conforme dispuser a respectiva lei orgânica.

Frise-se que o papel do magistrado se restringe exclusivamente a um controle da legalidade da atuação ministerial. Tratando-se o ANPP de um negócio jurídico processual entre partes, sob hipótese alguma o magistrado poderá — ele mesmo — estipular condições e/ou benefícios ao imputado, ou mesmo adequar alguma cláusula ajustada entre as partes.

O controle judicial de legalidade não retira a natureza negocial do instituto ou o protagonismo de qualquer uma das partes na negociação. Ao contrário, reforça a concepção de que na justiça penal negocial a atuação do Ministério Público não se dá como autoridade — que simplesmente outorga um benefício ao imputado quando cabível —, mas como uma parte ao lado da defesa. Assim, espera-se promover uma participação maior do imputado na negociação das condições a serem ajustadas e, ao mesmo tempo, imprimir certa racionalidade na celebração dos acordos de não persecução penal. 


Notas de rodapé

1 O entendimento jurisprudencial predominante é de que constitui poder-dever do Ministério Público oferecer proposta de suspensão condicional do processo quando preenchidos os requisitos legais pelo acusado.

2 Veja-se, por exemplo, a Exposição de Motivos 14/2019-MJSP, que deu origem ao “Pacote Anticrime”, resultando na Lei 13.984/2019. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1712088. Acesso em: 11 mar. 2021.

3 Segundo Jorge de Figueiredo Dias: “O MP está obrigado a proceder e dar acusação por todas as infracções de cujos pressupostos — factuais e jurídicos, substantivos e processuais — tenha tido conhecimento e tenha logrado recolher, na instrução, indícios suficientes. Não há, pois, lugar para qualquer juízo de «oportunidade» sobre a promoção e prossecução do processo penal, antes esta se apresenta como um dever para o MP [...] A actividade do MP desenvolve-se, em suma, sob o signo da estrita vinculação à lei (daí o falar-se em princípio da legalidade) e não segundo considerações de oportunidade de qualquer ordem, v.g. política (raison d’État) ou financeira (custas).” (1974, p. 126-127).

4 A possibilidade de oferta de acordos de não persecução penal pelo Ministério Público e/ou pelo querelante em crimes de ação penal de iniciativa privada não será analisada nesta oportunidade, sendo objeto de reflexão futura dos autores.


Referências

BRASIL. Ministério da Justiça e da Segurança Pública. EM n.º 00014/2019 MJSP, de 31 jan. 2019. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1712088>. Acesso em 11 mar. 2021.

FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra, 1974.

O risco de overcharging na prática negocial do processo penal brasileiro

Pedro Luís de Almeida Camargo 

Especialista em Obtenção, Interpretação e Valoração da Prova pela Universidade de Salamanca. Bacharel em Direito pela USP. Advogado. 

Link lattes: http://lattes.cnpq.br/8451429372152340

ORCID: 0000-0003-1330-0929

pedro.la.camargo@gmail.com


Resumo: O presente trabalho visa a avaliar se existe um risco relevante de ocorrência do overcharging nas práticas negociais do Direito Penal brasileiro, tomando como base a definição desse conceito no Direito norte-americano e as condições que favorecem sua existência nos Estados Unidos. Ao final, verifica-se em que medida essas condições se reproduzem no Direito brasileiro, especificamente em relação aos institutos da transação penal e do acordo de não persecução penal.

Palavras-chave: Plea bargaining – Overcharging - Transação penal - Acordo de não persecução penal - Direito norte-americano.

Abstract: This article aims to articulate an analysis of the risk of extensive overcharging practice in the Brazilian Criminal Law’s bargaining mechanisms, working with the concept as defined in American Law and understanding the factors which favor its existence.  At the end, we check if those factors are present in Brazilian Law, with a special focus on the “penal transaction” and “non-prosecution agreement” regulated by Brazilian Law.

Keywords: Plea bargaining – Overcharging - Penal transaction - Non-prosecution agreement - American Law.


Data: 29/06/2021
Autor: Pedro Luís de Almeida Camargo

1. Introdução

A introdução paulatina de soluções negociadas no processo penal brasileiro é uma realidade inegável.

Essa expansão de medidas negociais, que começou timidamente com a Lei 9.099/1995, especialmente a transação penal, tem ganhado contornos mais expressivos nos últimos anos, como se vê na introdução legislativa de um novo “mecanismo de condenação por evitação de julgamento”,1 consistente no acordo de não persecução penal, previsto no art. 28-A do Código de Processo Penal.

A vasta experiência histórica dos Estados Unidos da América com soluções negociadas pode ser útil para entender quais os riscos que essa expansão traz, especialmente em se tratando do plea bargaining. Dentre as graves disfuncionalidades no sistema norte-americano, destaca-se o chamado overcharging, prática consistente na imputação excessiva e sem base contra um imputado para colocá-lo em uma posição negocial desfavorável.

Uma verdadeira análise de direito comparado demandaria um estudo aprofundado da realidade institucional de ambos os países, o que é incabível aqui. O método empregado é, portanto, mais simples: apenas se analisa o fenômeno no Direito norte-americano, segundo compreendido pela literatura local, e verifica-se em que medida algumas de suas condições de desenvolvimento se reproduzem no ordenamento brasileiro. Com essa metodologia, o objetivo final é verificar se há risco perceptível de ocorrência do overcharging no sistema brasileiro, especificamente na transação penal e no acordo de não persecução penal.2 

2. O overcharging no Direito norte-americano

Como se sabe, a negociação é o meio mais comum de aplicação de pena no sistema norte-americano, especialmente pelo instituto do plea bargaining.3 O plea bargaining consiste essencialmente na negociação entre acusador e acusado sobre a imputação ou sobre a pena, implicando na confissão e renúncia do imputado às garantias processuais e ao direito a um julgamento em troca de um pedido, por parte do acusador, que lhe seja aplicada uma pena menor, uma imputação mais branda ou a não persecução de parte dos fatos (LAFAVE; ISRAEL, 1992, p. 898).

As razões para a proeminência desse mecanismo de imposição de punição são complexas e multifatoriais.4 No entanto, independente dos motivos históricos de sua adoção, há mecanismos jurídicos que o sustentam, como o conceito de voluntariedade nele empregado,5 e o conceito de acusador que se tem no sistema.6

É nesse contexto que ocorre o fenômeno do overcharging. Em síntese, ele pode ser definido como a prática consistente em multiplicar as acusações contra um imputado (horizontal overcharging) ou imputar prática de crime mais grave a ele (vertical overcharging), com o objetivo de induzir o imputado à negociação de um guilty plea – a aceitação da aplicação de pena imediata, com a renúncia ao julgamento por júri no curso do processo – em troca de o acusador dispensar parte das acusações ou reduzi-las a crimes menos graves (ALSCHULER, 1968, p. 85-86). O uso dessas espécies de acusação excessiva é estratégico: o acusador muitas vezes não dispõe de prova suficiente para acusar pelas acusações “a mais” ou ao menos não tem interesse em assegurar a condenação por elas, mas aas usa como moedas de troca (ALSCHULER, 1968, p. 85-86). Embora o fenômeno chame atenção desde os anos 1960, a literatura recente mostra que os mecanismos de overcharging vertical e horizontal permanecem essencialmente os mesmos  (CRESPO, 2018, p. 1312).7

Nesse sentido, a discricionariedade da qual os acusadores gozam na formulação da acusação é um importante sustentáculo do sistema (LANGER, 2006, p. 248), quase não havendo controle judicial ou por parte do júri.8 Com efeito, o papel do juiz nessa análise tende a ser passivo, inclusive impondo sua abstenção em relação à análise de possível uso de acusações iniciais excessivas para a obtenção de vantagens negociais (LAFAVE; ISRAEL, 1992, p. 908).

Ademais, há um poder imenso na mão do acusador na definição de crimes e penas,9 podendo o sistema ser caracterizado como de adjudicação unilateral pelo acusador (LANGER, 2006, p. 248-249). Isso ocorre em grande parte porque os juízes não possuem um papel ativo no controle da base fática da imputação, checando apenas a voluntariedade da aceitação e seu conhecimento a respeito das garantias das quais está abrindo mão (BROWN, 2014, p. 77). As razões para esse papel geral de inatividade são complexas, derivando tanto do desenho adversarial do sistema (ZILLI, 2019, p. 164) quanto de considerações sobre o risco de perda de imparcialidade do juiz e de eficiência do sistema no caso de seu envolvimento ativo nas negociações (TURNER, 2006, p. 501-502).

Há, ainda, um fator de ordem penal material que favorece a prática do overcharging: a proliferação de crimes, que muitas vezes não possuem distinções adequadas entre si e se sobrepõem (LANGER, 2006, p. 287). Ainda, o standard usado pelas cortes norte-americanas para excluir o enquadramento de um mesmo fato em múltiplos crimes é extremamente estreito, não providenciando conceitos estritos para a resolução do conflito de normas criminalizantes.10

Isso gera um cenário de negociação coercitiva, já que ao imputado são dadas duas opções: aceitar um processo contra si por uma acusação excessiva com o risco de uma pena mais alta que a devida; ou renunciar seus direitos processuais para aceitar a aplicação imediata de uma pena menor, seja por um crime menos grave ou por menos crimes.

Ambas as situações estão aquém do mínimo esperado pelo imputado em relação a seus direitos: um julgamento com todas as suas garantias pela infração que seja adequada à base fática e jurídica da acusação contra ele formulada.11 Dessa forma, ambas as opções são coercitivas e não fazem jus aos direitos fundamentais do acusado.

3. Indicadores do risco de overcharging no direito brasileiro

Para compreender se esses mesmos fatores de risco se reproduzem no Direito brasileiro, é necessário analisar três pontos: se a legislação penal material oferece riscos de sobreposição excessiva de infrações; se o acusador no sistema processual penal brasileiro possui ampla discricionariedade; e se há controle judicial sobre a acusação e em que termos.

Em relação ao primeiro ponto, observa-se que há um risco menor no Direito brasileiro que no norte-americano. Com efeito, ainda que se presencie no Brasil uma grande  proliferação das criminalizações, há, na tradição penal derivada do Direito Penal europeu continental, técnicas de manejo do conflito aparente de normas.12 Essas técnicas se desenvolvem principalmente em razão da concepção substancial da vedação ao bis in idem, que proíbe o múltiplo sancionamento pela prática dos mesmos fatos (SABOYA, 2018, p. 78).

Já quanto ao segundo fator, também há um menor risco. Isso porque a vinculação do acusador à lei e o menor espaço de atuação discricionária do acusador são marcas da tradição jurídica europeia continental e brasileira, o que faz com que qualquer instituto negocial deva ser compreendido como “espaço de oportunidade” regrados pela legalidade (VASCONCELLOS, 2015, p. 50-51), o que condiz com a visão institucional do acusador como um oficial público, e não como um agente que possui interesses próprios políticos ou de carreira (PIZZI, 1993, p. 1331-1332).

Ainda que os fatores listados possam constituir barreiras jurídicas ao overcharging, apenas um controle judicial sobre a acusação pode efetivá-las. Esse controle precisa ser analisado sob dois aspectos: sobre as acusações em geral e especificamente nos procedimentos negociais.

Explica-se o primeiro aspecto: apenas uma prática efetiva de controle de admissibilidade de acusação nos procedimentos pode garantir ao imputado que acusações excessivas infundadas não gerarão processos ou condenações por crimes mais graves ou por mais crimes que os efetivamente cabíveis para um fato tido como criminoso.13

Analisando o procedimento de análise de admissibilidade de acusação no Código de Processo Penal, observa-se que há a previsão expressa de controle judicial sobre a denúncia nos termos do art. 395, que lista hipóteses de sua rejeição. Como a acusação excessiva se caracteriza por uma qualificação jurídica excessiva em relação aos fatos ou por uma imputação mais gravosa destituída de base probatória, haveria, respectivamente, inépcia da denúncia e falta de justa causa para a ação penal nessas hipóteses.14 O mesmo ocorreria na audiência de instrução e julgamento no procedimento sumaríssimo, conforme o art. 81 da Lei 9.099/95.

No entanto, a prática judicial possui alguns indicativos de que isso não é realizado com a assiduidade devida. O primeiro se refere ao brocardo de que “o acusado se defende dos fatos e não da qualificação jurídica”,15 com a justificativa de que a mudança da qualificação jurídica na sentença sanaria qualquer problema daí advindo.16 Outro indicativo é a ausência de um recurso contra o recebimento da denúncia, cujo controle se dá apenas por meio do Habeas Corpus, que possui limitações procedimentais e uma jurisprudência consolidada em relação à excepcionalidade da análise de justa causa.17

Nesse cenário, ainda que isso não gere uma condenação, há a ameaça de um processo derivado de acusação excessiva, que pode produzir efeitos infamantes, medidas coativas e o próprio impedimento da aplicação dos mecanismos negociais, entre outros.18

Por fim, é necessário compreender o papel do juiz nos procedimentos negociais em si para verificar se há alguma possibilidade de controle sobre essas hipóteses.

Nesse sentido, verifica-se que o procedimento da transação penal prevê a submissão da proposta à apreciação do juiz, nos termos do art. 76, §4º, da Lei 9.099/1995. Esse dispositivo indica requisitos que aparentam demonstrar que o controle por parte do juiz é meramente formal (BADARÓ, 2018, p. 652-653). Assim, não se descarta a possibilidade de um uso informal da ameaça de acusação excessiva com a finalidade de possibilitar a celebração da transação diante da ausência de controle judicial.

Já o procedimento do acordo de não persecução penal prevê um papel mais robusto para o juiz, declarando que deve haver a verificação da voluntariedade, nos termos do art. 28-A, § 4º, do Código de Processo Penal. No entanto, para que essa previsão legal se converta em um instrumento efetivo de prevenção de cenários coativos, é necessária uma visão ampla da voluntariedade, que leve em conta também as circunstâncias que levaram o imputado a aceitar a proposta, e não apenas a verificação de ausência de coação direta, por exemplo.19

Por fim, destaca-se que, como ambos os procedimentos negociais tratados não podem ensejar a imposição de prisão, o controle de voluntariedade seria especialmente importante para verificar se a ameaça de privação de liberdade não foi usada pela acusação para coagir o imputado a aceitar uma penalidade que não enseje a privação da liberdade.

4. Conclusões

O presente trabalho buscou identificar o potencial risco de overcharging no Direito brasileiro, especificamente na transação penal e no acordo de não persecução penal. A partir da análise do Direito norte-americano, foram listadas três circunstâncias que favorecem a prática nos Estados Unidos, verificando-se que elas não se reproduzem com a mesma robustez no Direito brasileiro.

Dessa forma, pôde se concluir que o risco de uma prática extensiva de overcharging pelos acusadores brasileiros é reduzido se comparado ao cenário norte-americano, ao menos para os dois institutos analisados. No entanto, a debilidade do controle judicial pode aumentar exponencialmente esse risco, de maneira que uma reelaboração rigorosa do controle de admissibilidade da acusação na prática servirá para evitar o overcharging.


Notas de rodapé

1 Definidos como meios de se chegar a uma condenação criminal sem julgamento por Máximo Langer (LANGER, 2019, p. 2). Os institutos analisados efetivamente aplicam penas restritivas de direitos, se enquadrando na definição dada pelo autor.

2 A colaboração premiada não será analisada como objeto do presente trabalho, tendo em vista que foge à definição de “mecanismo de condenação por evitação de julgamento” e se distancia da noção de plea bargaining.

3 98% das condenações criminais nos Estados Unidos foram alcançadas por plea bargaining e mecanismos similares no ano de 2014, por exemplo (LANGER, 2019, p. 28).

4 Considerações sobre fatores históricos que influenciaram a adoção extensiva do plea bargaining podem ser encontradas em: ALSCHULER, 1979.

5 Os precedentes da Suprema Corte norte-americana definem a voluntariedade nesses casos como a consciência das consequências e a ausência de força, ameaças, erros ou promessas que vão além daquelas incluídas no acordo. Brady v. United States, 397 U.S. 742 (1970).

6 Conforme apontado por William T. Pizzi, a ampla discricionariedade do acusador norte-americano é fruto de uma evolução histórica e de raízes políticas profundas (PIZZI, 1993).

7 Apesar de descrever os mecanismos tradicionalmente denominados de overcharging horizontal e vertical, inclusive citando essa nomenclatura, Andrew Manuel Crespo prefere os termos piling on para o acúmulo de acusações por diferentes crimes e overreaching para o ato de inflar as acusações no aspecto fático ou jurídico. Esses mecanismos, juntamente com a habilidade de “retornar” à acusação mais adequada ao caso como resultado das negociações (“sliding down”), asseguram o incentivo para o guilty plea nos casos de acusação excessiva (CRESPO, 2018, p. 1313-1314).

8 Máximo Langer destaca que o controle de grand juries e de audiências preliminares sobre a admissibilidade da acusação são frágeis, ao menos na maioria das jurisdições (LANGER, 2006, p. 248).

9 Importante mencionar que o grau de discricionariedade  pode variar conforme a regulação estadual de cada um dos aspectos do overcharging nos Estados Unidos, conforme expõe Andrew Manuel Crespo detalhadamente, inclusive com dados sobre o funcionamento em cada Estado (CRESPO, 2018). Mesmo assim, os pilares aparentam ser comuns em todas as jurisdições americanas.

10 O chamado Blockburger test, derivado do caso: Blockburger v. United States, 284 U.S. 299 (1932).

11 Esse conceito de coerção é dado por Máximo Langer, utilizando-se do conceito de filosofia moral de baseline como sendo o mínimo ao qual o imputado teria direito (LANGER, 2006, p. 225).

12 Como os princípios da especialidade, da subsidiariedade e da consunção (BITENCOURT, 2012, p. 247-252).

13 Desde que o imputado esteja devidamente assessorado por uma defesa técnica efetiva, que possa informá-lo devidamente das consequências de uma acusação excessiva.

14 Respectivamente, pela incongruência entre a descrição dos fatos e a qualificação jurídica do crime, e pela falta de elementos probatórios mínimos para a ação penal (BADARÓ, 2018, p. 176).

15 Apenas a título de exemplo: Supremo Tribunal Federal (1. Turma). Inq 4093, Rel. Min. Roberto Barroso. DJe 18 maio 2016. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10975135, Acesso em: 14 abril 2021.

16 Conforme explica Gustavo Badaró, da equivocada premissa de que o réu se defende apenas dos fatos, admite-se que o juiz altere a qualificação jurídica na sentença sem que sequer seja dada oportunidade às partes (BADARÓ, 2019, p. 146).

17 Apenas a título de exemplo: Supremo Tribunal Federal (2. Turma). HC 150.580 AgR, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe 14 dezembro 2018. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=748868589. Acesso em: 14 abril 2021.

18 Há julgados que reconhecem a possibilidade de correção da qualificação jurídica dos fatos nas hipóteses de erro flagrante, alteração de competência absoluta e concessão de benefícios processuais ao acusado. Cf.: Tribunal Regional Federal da 3ª Região (11. Turma). HC 0004307-79.2017.4.03.0000, Rel. Des. Nino Toldo, DJe 27 agosto 2018. Disponível em: http://web.trf3.jus.br/acordaos/Acordao/BuscarDocumentoGedpro/6698196. Acesso em: 14 abril 2021.

19 Dentro da incipiente doutrina sobre a regulamentação legal do acordo de não persecução penal, Guilherme de Souza Nucci já adota uma visão de voluntariedade identificada com a “atitude livre de qualquer coação”, mostrando uma possível adesão a um conceito restrito de voluntariedade (NUCCI, 2020, p. 63).


Referências

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