O espectro entre filosofia e religião

Ouço dizer que o espiritismo não é uma religião, mas uma filosofia. O que é então uma religião filosófica? — Rosana Castro, Santo André, SP

Por  Humberto Schubert Coelho*

A pergunta remete-nos às classificações mais sutis do espectro que divide a filosofia (tarefa sistemática, crítica, analítica) da religião (tarefa prática e existencial de promoção de sentido para a vida). 

Para não cair na ingenuidade de conceitos de uma filosofia ou uma religião ‘puras’, é preciso lembrar que cada filosofia e cada religião sempre possuirão relações com outras artes, ciências e vivências humanas. Há portanto, religiões mais ou menos filosóficas; filosofias espiritualistas ou materialistas mais religiosas, menos religiosas, e antirreligiosas.

Uma religião filosófica inclui em si espaço para reflexão e discussão de conceitos; não se supõe na posse exclusiva da verdade, ao contrário de expressões religiosas não filosóficas, isto é, não raciocinadas. A religião raciocinada e amadurecida é entendida como expressão típica da consciência humana em formas materializadas e estruturadas da cultura (uma crença, um culto, certos procedimentos, rituais etc).  

Na contramão dessa religião ‘à luz da razão’, estão as expressões menos conscientes da religiosidade como fenômeno humano, e que incluem noções mágicas, simplórias, fatalistas ou arbitrárias, que denunciam sempre a limitação da concepção filosófica da vida e claros traços de antropomorfismo, ou seja, projetando características humanas em Deus.

*Humberto Schubert Coelho é filósofo e pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Saúde e Espiritualidade e professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG. 

A religião como laço
Allan Kardec

Espiritismo é uma religião? Ora, sim, sem dúvida, senhores; no sentido filosófico, o espiritismo é uma religião, e nós nos glorificamos por isto, porque é a doutrina que funda os laços da fraternidade e da comunhão de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas sobre as mais sólidas bases: as próprias leis da Natureza.


Por que, então, temos declarado que o espiritismo não é uma religião? Porque não há uma palavra para exprimir duas ideias diferentes, e porque, na opinião geral, a palavra religião é inseparável da ideia de culto; porque ela desperta exclusivamente uma ideia de forma, que o espiritismo não tem. Se o espiritismo se dissesse religião, o público não veria aí senão uma nova edição, uma variante dos princípios absolutos em matéria de fé; uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, de cerimônias e de privilégios; ele não o separaria das ideias de misticismo e dos abusos contra os quais tantas vezes a opinião pública se levantou.


Não tendo o espiritismo nenhum dos caracteres de uma religião, na acepção usual do vocábulo, não podia nem devia enfeitar-se com um título sobre cujo valor as pessoas inevitavelmente ter-se-iam equivocado. Eis por que simplesmente se diz: doutrina filosófica e moral. (O espiritismo é uma religião? – Revista Espírita, 1868.)